Perguntas mais freqüentes sobre Catalunha e mestre Raimundo Lúlio, respondidas pelo Prof. José Higuera.
Qual o contexto
histórico da vida de Ramon Llull?
Qual a relação de Ramon
Llull com a cavalaria?
Por que Llull é
conhecido como o Doutor Iluminado?
O
que foi Cruzada Intelectual e qual sua relação com as cruzadas?
Por que Llull pregou tanto para
o Islã
Qual a relação
de Llull com os filósofos da sua época?
Qual a relação entre
a Ars Magna e a geometria?
A Ars está exclusivamente a serviço da
teologia?
Por que Llull é
considerado um Escolástico Popular?
Quem foi influenciado
pelo pensamento luliano?
Qual a
contribuição de Llull ao pensamento lógico?
Llull criou a idéia
moderna de Enciclopédia?
Qual foi a
posição de Llull na discussão razão-fé?
Qual a relação entre método e Ars?
Quais
foram as críticas a Llull feitas por Bacon e Descartes?
Qual o contexto
histórico da vida de Ramon Llull?
A vida
de Llull transcorreu entre 1235 e 1316. Ele teve a oportunidade de viver o
apogeu e a decadência da Coroa de Aragão e Catalunha, que naquele tempo
estendia-se por todo o Mediterrâneo. A união dos condes catalães, que sempre
foram chamados de príncipes, com o reino de Aragão teve lugar em 1137 e deu aos
primeiros o título de rei. Mas para podermos entender bem o poder naquela Coroa,
não podemos perder de vista que sua unidade era algo puramente pessoal, de tipo
dinástico: cada um dos membros que a constituíam conservava sua personalidade e
seus direitos próprios. O seu núcleo originário era composto pelos catalães e os
aragoneses, mas entre os séculos XIII e XIV agregaram-se a ele os reinos de
Valencia, Maiorca, Sicília, Sardenha, os ducados gregos de Atenas e Neopátria,
Nápoles e, durante algum tempo, partes do Midi francês. A Coroa de Aragão e
Catalunha constituía uma espécie de Commonwealth, uma articulação
institucional flexível –um império compatível com a liberdade dos seus membros
integrantes-, no marco de uma concepção política de tipo federal. Esta
configuração do poder manteve-se até princípios do século XVIII, pois a
monarquia hispânica dos Habsburgo, que se instalou nos séculos XVI e XVII,
preservou esta estrutura constitucional.
A
família Llull acompanhou, em 1229, Jaime I o Conquistador na tomada da ilha de
Maiorca, onde Llull cresceu, sendo parte da corte, como senescal de Jaime II,
filho de Jaime I e futuro soberano de Maiorca.
Com a
morte de Jaime I o Conquistador, em 1276, o reino de Maiorca, constituído por
três territórios separados (Rosselló-Cerdanya-Capcir, Montpellier e as Ilhas
Baleares), tornou-se independente até 1349, sob o reinado do seu filho Jaime II
de Maiorca e seus sucessores, Santos I e Jaime III. Por um breve período de
treze anos, de 1285 a 1298, Jaime II perdeu as Ilhas Baleares em favor do seu
sobrinho Afonso III de Aragão. Maiorca, como reino independente, foi vítima das
lutas entre a Coroa de Aragão e a da França pela hegemonia no Mediterrâneo
ocidental. Os mesmos poderes que haviam afundado o domínio da Coroa de Aragão no
Midi francês, a monarquia francesa e
o Pontificado, trataram de converter o reino maiorquino num “satélite” destinado
a mediatizar a expansão catalã-aragonesa.
Os
catalães, já naquele tempo, eram hábeis comerciantes e destros navegantes que
dominavam rotas e mantinham relações de amizade, comerciais e políticas com
dignitários de distintos credos e povos. Isto permitiu que Llull conhecesse
perfeitamente árabes, judeus e cristãos.
Llull
recorria à Europa procurando apoio para sua iniciativa principal: a união da
cristandade ao redor de uma cruzada que usaria principalmente a persuasão para
converter os infiéis à fé cristã. Pediu apoio para seu projeto aos papas
Inocêncio III e Bonifácio VIII, ao rei da França Filipe “o Belo”, projeto que
começava com a criação de escolas de línguas orientais para os apóstolos da
cruzada se entenderem melhor com os futuros convertidos. Pensou em converter os
tártaros que, como uma noite dos tempos, aguardavam a eleição do novo Khan nos
seus acampamentos ao norte do mar Cáspio e ameaçavam conquistar a Terra
Santa.
Os
cruzados lulianos eram sobretudo monges poliglotas, treinados em cultura
oriental e intelectuais destros no discurso e na demonstração. A matriz do
conhecimento e a argumentação é a Ars. Este sistema de conhecimento e
demonstração das verdades cristãs contém os fundamentos comuns às três
religiões, necessários para uma filosofia do Ser primeiro.
Llull
intervém na história catalã como o impulso do espírito cultural de um reino
diversificado e extenso. A língua catalã é conservada como língua diplomática na
Coroa de Aragão. As relações do reino com o Oriente Médio permitem a Llull suas
viagens. Este é o ambiente ideal para um ecumênico como Llull: a máxima
complexidade orientada pela suma simplicidade dos seus ideais.
Qual a relação de Ramon
Llull com a cavalaria?
Llull
foi um cavaleiro da corte de Jaime I até os trinta anos, quando, como ele mesmo
diz, se dedicava às artes amorosas e à redação de poemas galantes. A cavalaria
já não era então aquele meio de ascensão social ou de sagração de paladinos. É
sobretudo um relaxado status cortesão
que permite uma vida dissipada. Paralelo a isso, existiam no Oriente as ordens
religioso-militares: os cavaleiros do Templo e os cavaleiros do Hospital. Estas
ordens, criadas para cuidar dos peregrinos e obedecer ao ascetismo cristão, são
para Llull o ideal de cavalaria.
Quando
Llull escreveu O Livro da Ordem de
Cavalaria não teve contato direto com essas ordens, porém aparece na obra um
modelo de cavaleiro que obtém os significados da sua Ars na fonte sagrada do cristianismo.
Assim, cada ato ou peça de vestuário do cavaleiro são o signo de uma doutrina
superior e transcendental.
A lenda
que vincula Llull com a alquimia começa com o relato de uma viagem do maiorquino
à Inglaterra, possivelmente em 1301. Nesta viagem faria contatos com uma
tradição de alquimistas, que o levaram a escrever tratados sobre esta arte.
Mircea Eliade atribui a Llull o livro A
Prática, que seria um manual sobre os procedimentos da disciplina.
No livro
Felix, Llull relata um episódio sobre
os falsos alquimistas que simulavam o processo alquímico requentando recipientes
revestidos antes com ouro e que a certa temperatura tingiam os metais utilizados
com um dourado característico. Estes alquimistas são charlatães.
Por que Llull é
conhecido como o Doutor Iluminado?
O século
XIII é o dos Doutores da Igreja: Tomás de Aquino é o Doutor Angélico; Alberto
Magno, o Doutor Universal; Duns Scoto, o Doutor Sutil. Llull é o Doutor
Iluminado porque seu instrumento de persuasão dos infiéis, a Ars Magna, foi-lhe revelado na solidão
do monte Randa, na ilha de Maiorca. No Breviculum, de Tomas le Myesier,
discípulo de Llull, a cena da iluminação inclui um diálogo com a Virgem Maria.
Llull pede a ela que, pela imensa piedade do Criador, forneça-lhe as bases para
criar uma Ars que gere um
entendimento geral das verdades da doutrina cristã.
O que
foi a Cruzada Intelectual e qual sua relação com as cruzadas?
A Cruzada Intelectual não é uma idéia de Llull.
No século IX Pedro “o Comedor” pensava em educar monges nas tradições orientais
para que a compreensão dos infiéis e pagãos ajudasse a conversão destes ao
cristianismo. Nas escolas de tradutores de Toledo circulavam textos em línguas
orientais para sua posterior tradução e interpretação.
Desde
1219 iniciou-se a queda dos enclaves do ocidente cristão na Terra Santa. As
ordens do Templo e do Hospital foram acusadas de terem relaxado sua luta contra
o infiel. A conquista militar que no século XI ofuscou as vozes da persuasão
deixou o diálogo renascer. Resguardado em Limasol, Jacques de Molay, último
mestre do Templo, recebeu a visita de Llull, que no seu projeto de nova cruzada
apresentado ao Concílio de Vienne quer unir as ordens religioso-militares numa
mesma força que cuide dos apóstolos lulianos, os quais, falando a língua do
infiel e usando a Ars Magna,
converteriam os infiéis. Este projeto, consignado no Liber de Fine, inclui um plano de rotas
para a cruzada e um inventário de estratégias e instrumentos militares que a
cruzada deveria usar na Terra Santa.
Por que Llull pregou tanto para o
Islã?
O
projeto luliano cobre judeus, cismáticos, heréticos e até os professores
averroístas de Paris. Claro que, desde um ponto de vista mais prático, o Islã é
o adversário mais forte do Mediterrâneo, embora Llull pensasse iniciar sua
tarefa de conversão com os judeus, por serem mais familiares ao cristianismo. A
verdade é que o Islã possui uma tradição filosófica e científica que o Ocidente,
ainda no século XIII, não tinha. Esta tradição, segundo alguns intérpretes,
influenciou o próprio Llull nas suas leituras de lógica (Al-Gazel) e mística
sufí (Ibn Arabi). Llull, visto por alguns historiadores como um antimuçulmano,
era antes de tudo um homem de sua época, ciente da importância do Islã na vida
cultural do Ocidente e da influência política que ajudaria a cumprir sua cruzada
de conversão dos infiéis.
Llull é
o criador da língua literária catalã e uma das primeiras referências na história
da literatura do reino catalão. Criou uma obra que abrange todos os gêneros:
poesia, tratados filosóficos, romance, obras didáticas, apologéticas, tratados
diplomáticos e de estratégia política, dirigidos às cortes papais e aos reis da
França ou Alemanha. Llull escrevia também em árabe e elaborava suas próprias
traduções para o catalão ou para o latim.
A Ars Magna é um instrumento de
conhecimento geral que demonstra a realidade do Ser primeiro e sua participação
na natureza do mundo, para qualquer doutrina filosófica ou religiosa, ou pelo
menos para as que Llull conhecia na sua época. A palavra Ars usa-se no mesmo sentido do termo
grego tekhné, que significa a
invenção de um procedimento intelectual elaborado segundo algum fim ou
necessidade humana. A Ars Magna é o
procedimento intelectual cujo fim é identificar a realidade do ser na realidade
das coisas e do intelecto que as conhece.
A
realidade do Ser primeiro mostra-se para o intelecto num conjunto de princípios
primitivos e absolutos que, quando são considerados em Deus, Llull chamará Virtudes de Deus ou Dignitates Dei: Bondade, Grandeza,
Duração, Verdade, Vontade, Poder, Glória. Anterior a Llull, Ricardo de São Vítor
já havia considerado que Deus reunia todas as perfeições e estava além de todas
elas, pois sua existência é anterior a elas. Llull identifica deste modo o Deus
da filosofia, o Ser, com o Deus da doutrina cristã e o vê como uma pura
atividade, um Ato Puro, fusão de muitos outros atos ou perfeições. Neste
sentido, Deus, segundo Llull, é uno e múltiplo; em realidade, transcende a
unidade e a multiplicidade.
Toda
realidade que participa do Ser, e inclusive a própria realidade suprema ou Ato
Puro de Ser, estará constituída por esses princípios ativos absolutos. Com eles,
Llull construiu um artifício lógico e demonstrativo que mostra a dependência e a
participação, tanto da realidade natural quanto da realidade conhecida, da
realidade do Ser primeiro.
A Ars usa métodos de cálculo, como a
combinatória, representados em figuras geométricas, onde os princípios primeiros
mostram-se em diversos níveis de complexidade e representam a ordem de
dependência das criaturas e do conhecimento do Ser primeiro. A Llull interessa
mostrar os graus de subordinação –devictitio- que as coisas têm segundo o
Ser. Em termos dos vitorinos, Llull precisa o grau de exterioridade que o
partícipe tem no Ser. Os graus de subordinação e de participação Llull expressa
na ordem dos seus princípios e na forma como eles se combinam. Na seguinte
matriz estão representados:
Ordem das figuras |
Princípio |
Subordinação |
Permite conhecer |
Representação geométrica |
Figura A |
Absolutos Bondade, Grandeza, Eternidade, Poder, Sabedoria, Vontade, Virtude, Verdade, Glória |
Relação 1-1 |
Princípios primitivos do Ser |
Círculo |
Figura T |
Relativos Diferença- concordância
contrariedade; Princípio-meio-fim; maioridade-igualdade- minoridade;
|
Relação 1-3 |
Relações do Ser |
Triângulos |
|
Perguntas É? Que é? De que é?
Por que é? Quanto é?
Qual é? Quando é? Onde é? De que modo e com que é? |
Relação 1-4 |
Modos de Ser |
|
Escala |
Graus de Ser Deus, Anjo, Céu, Anjo, Homem, Imaginação, Sensitivo, Vegetativo, Elementativo, Artificial. |
Relação 1-9 |
Feitos naturais |
|
Figura X |
Valores |
Relação 1-9 |
Atos do homem |
Círculo |
Os graus
de subordinação ao Ser são cada vez mais complexos de cima para baixo, e o grau
de participação no Ser é analógico.
Qual a relação
de Llull com os filósofos da sua época?
Llull
freqüenta as universidades para conseguir que as autoridades acadêmicas
autorizem o ensino da Ars e cumpra
assim o objetivo para o qual esta foi criada, que é a conversão dos infiéis.
Llull participa, aliás, do debate contra os averroístas, professores de artes da
Universidade de Paris que defendem o comentarista de Aristóteles Averróis (Ibn
Ruschd). Um dos principais temas do debate é a independência e a autonomia do
intelecto humano. Llull dirá que, segundo os fundamentos do seu sistema, as
verdades racionais não podem se auto-sustentar, pois o fundamento delas as faz
transcendentes à realidade do Ser primeiro.
Qual a relação entre
a Ars Magna e a geometria?
As
figuras geométricas lulianas são meramente instrumentais. Os círculos,
triângulos e quadrados cumprem a função de representar e organizar a forma,
assim como os princípios da Ars se
combinam e se tornam mais complexos. As figuras facilitam, segundo Llull, o
aprendizado porque ajudam a memória e agilizam o raciocínio. Llull acreditava
que as figuras da Ars são autônomas
para os aprendizes quando estes conhecem em detalhe seus princípios. Portanto a
letra miúda da Ars tem uma
representação sensível fundamental para o discurso demonstrativo e para a
persuasão que a obra queria oferecer.
A Ars está exclusivamente ao serviço da
teologia?
A Ars Magna é um instrumento de
conhecimento geral fundado nos aspectos primeiros e mais primitivos do Ser.
Segundo esta obra, o conhecimento teológico é tão geral que contém e participa
de conhecimentos mais particulares e, embora os transcenda nos seus limites, faz
parte deles como uma ciência geral do Ser. A Ars não está a serviço da teologia,
embora nela se fundamente; procura antes as novas facetas da realidade do Ser
manifestadas na natureza do mundo ou nos atos humanos. Por isso, esta obra
luliana multiplica-se em diversos tratados sobre filosofia natural, política,
didática, moral, diplomacia etc.
Por que Llull é
considerado um Escolástico Popular?
Llull é
um intelectual do seu tempo nas fronteiras da universidade. Recorria a ela por
causa da necessidade de um reconhecimento de sua obra, que contribuiria nos
efeitos práticos que procurava com a Ars. As suas metas ficavam fora da
Universidade, pois a conversão dos infiéis exigia que os aprendizes da Ars e de línguas orientais se
distanciassem dela para procurar os futuros conversos. Poderíamos dizer que o
projeto ecumênico luliano é também um projeto de salvação universal para quem
não tinha acesso ao conhecimento de Deus. A Ars era um modelo de aprendizado
acelerado que dava ao aprendiz a faculdade de saber e explicar qualquer matéria,
independentemente de suas condições religiosas ou educativas.
O ponto
de partida de Llull na Ars é o
conhecimento dos princípios que constituem a riqueza do Ser primeiro. Partindo
destes princípios explica-se o resto das coisas, porque em algum grau eles
participam da realidade do Ser. As Virtudes de Deus são, por um lado, a
realidade das coisas –no seu ser-; por outro, a realidade do conhecimento do que
elas são –as essências-. Porém, a teoria do conhecimento suposta na Ars não é a mera contemplação da
participação das criaturas no Ser ou a verificação das essências realizadas por
Ele.
Conhecer
significa observar as criaturas e os objetos intelectuais, segundo a unidade
ilimitada do ser e a essência de cada criatura, revelada na sua própria
atividade. Reconhecer que a realidade é um processo de constante realização do
Ser, sempre atuante nas criaturas e nas essências de forma transcendente, nos
ajuda a entender que a realidade das coisas é tal porque uma realidade maior as
ultrapassa, e ultrapassa também as operações do intelecto conhecedor,
permanecendo o Ser como um substrato de realidade contínuo e ilimitado.
Para
Llull não existe adequação completa entre o pensar, o mundo e o Ser, pois esta
adequação não termina de ser elaborada nunca, já que não existe a objetividade
absoluta; para que esta existisse, o conhecido deveria ser totalmente
independente do conhecedor e isto é impossível pois o observador de alguma
maneira sempre interfere no observado. Acontece isto já com o próprio Criador,
que cria o mundo para se fazer homem. Nos seres, o mais imanente neles é o mais
transcendente, e como conhecer as coisas é conhecer seu ser, para conhecê-las de
um modo completo teríamos que nos situar fora delas, ou seja, n’Aquele que lhes
dá o ser. Por isto, todas as verdades dependem da realidade máxima do Ser
transcendente, que atua na realidade das coisas e sustenta os atos humanos
mediante os quais as conhecemos.
Llull é
realista porque as verdades conhecidas segundo os princípios e o método da Ars referem-se ao ser das coisas
conhecidas, embora não cheguem nunca a esgotar toda sua atualidade. Llull,
porém, não nos conduz com sua Ars a
uma contemplação estática destas realidades, porque está na base de todo o seu
sistema que o Ser é produtivo e está permanentemente pondo realidade em
diferentes níveis. Os conteúdos cognitivos e ontológicos levam o homem a
reelaborar em si mesmo a ordem da realidade; mas não é um realismo de razões
quietas.
A
realidade do ser é um processo de extrema simplicidade com resultados de máxima
complexidade. Por isso a Ars mostra
situações tão complexas como as determinações morais do homem ou do conhecimento
dos corpos celestes. Esta complexidade serve para mostrar a unidade analógica do
Ser em qualquer ordem do real. O trabalho da Ars é um árduo aprendizado da realidade
do Ser por meio de um instrumento de conhecimento geral.
Quem foi influenciado
pelo pensamento luliano?
Sem
contarmos os seguidores imediatos, que chegaram a conhecê-lo em vida, entre os
quais destaca-se Le Myésier, na ordem imediata da história, encontramos Nicolau
de Cusa, que possuía exemplares anotados da obra luliana. De Cusa encontrou
grande ajuda na obra de Llull, como por exemplo:
O fato
de coincidirem no homem o conhecimento e a ignorância, o que explica que em
qualquer campo do saber se encontre um ilimitado número de possibilidades de
conhecimento, este não pode ser abarcado de uma única vez. Por isso, o
conhecimento supera a si mesmo constantemente.
ii) O
uso de figuras geométricas para indicar ou significar a divindade. Basta lembrar
que para muitos autores Deus é representado de forma circular.
Pico
della Mirândola verá nas virtudes divinas a influência no homem e no mundo da
realidade do Ser primeiro, o que origina um processo de aperfeiçoamento
constante das coisas. Disto deriva que a liberdade humana seja o aperfeiçoamento
constante da obra primeira do Criador no homem.
Giordano
Bruno veria na Ars Magna um método
para conhecer as relações conceituais e naturais que poderiam ser apreendidas e
guardadas para um maior aproveitamento do saber.
Athanasius Kircher criaria com a sua Ars Magna Sciendi um espelho da Ars luliana multiplicando as funções das
figuras e ampliando as aplicações deste instrumento para obter uma ciência
universal. Ele acha que a Ars fornece
uma linguagem cuja generalidade ajuda no avanço da ciência.
Embora
Leibniz tenha criticado a Ars de
Llull, ao considerar que o método combinatório nela usado era insuficiente,
reconheceu em diversos fragmentos que o primeiro inspirador de uma linguagem
propriamente filosófica que contém as categorias gerais do pensamento foi Llull.
Se considerarmos o fato de que Leibniz é considerado o ponto inicial das
reflexões lógicas contemporâneas, seria necessário revisar Llull para ver suas
contribuições ao cálculo proposicional e aos modelos de automatismo conceitual
ou informático que foram chamados, nos anos 20, de máquinas lógicas.
Qual a
contribuição de Llull ao pensamento lógico?
Llull
foi o primeiro e único a estabelecer uma forma lógica diferente da exposta no Organon aristotélico, e assim fez porque
a Ars luliana é a lógica de todas as
lógicas. Na Ars mantém-se
expressamente um vínculo entre as primeiras e as segundas intenções, porque
Llull entendia que cada esfera da realidade tem o seu logos próprio. Assim a Ars, embora diferencie nove esferas
distintas de realidade, torna possível a sua unificação numa ciência geral. Esta
unificação de todos os logoi
constrói-se por meio das distintas perguntas a través das quais o método luliano
obriga o artista (assim chama-se quem manuseia a Ars) a encarar cada realidade.
Por
serem os princípios primitivos lulianos princípios do ente concreto e do objeto
conhecido, a Ars atinge um novo
realismo, que não tem nada a ver com o realismo exagerado clássico –no qual a
estrutura metafísica do concreto iguala-se à estrutura lógica do pensamento-,
mas se fundamenta no ser da realidade, pois na Ars se supõe sempre que é o ser do ente
que causa a verdade no entendimento.
Ao
colocar-se na perspectiva do ser, a Ars luliana descobre novos métodos de
demonstração. De fato, o que faz Llull é generalizar os métodos clássicos –a
demonstração, ou seja, uma comparação entre as atualidades do demonstrável e do
demonstrativo. Llull descobre assim a demonstração por equiparação, que ocorre quando o
meio demonstrativo e o demonstrável têm a mesma atualidade. Desde Aristóteles é
sabido que o nosso entendimento entende formando, e formando entende; então,
quando a forma vem comensurada com o ato que a atinge não pode haver erro. Se
houver excesso de forma, por deficiência do ato, aparece a incongruência, o
erro. Essa é a famosa demonstração per
aequiparantiam de Llull, que tem um nível superior às aristotélicas ao serem
estas casos especiais da demonstração luliana.
Aliás, a
Ars luliana supõe sempre o vínculo
entre o entendimento adequado à realidade e sua função raciocinante. Isto é,
possibilita a tematização do próprio ato de pensar, único caminho para descobrir
se o pensamento é verdadeiro ou não. Isto implica o transcender do próprio
pensamento, que a Ars pode fazer
porque se baseia nos princípios primitivos reais, os quais, além de constituir o
ser dos entes, servem de ponto de partida para qualquer ato do pensamento, e por
isso o transcendem.
Por tudo
que foi exposto, temos que reconhecer que a Ars luliana é mais que uma lógica
formal, pois recoloca na realidade os conceitos obtidos. Mas também é mais do
que uma ontologia que engloba o formal e o material, pois, ao levar em conta os
diversos logoi, quando trata da
verdade de Deus, ser simpliciter,
converte-se num autêntico estudo óntico da realidade divina.
Llull criou a idéia
moderna de Enciclopédia?
A
enciclopédia luliana deve muito às Summas escolásticas, à riqueza do
conhecimento antigo em diversas disciplinas, transmitido pelos árabes, e à
invenção de uma Ars que ampliará o
conhecimento humano em todas as áreas.
As Summas são a reunião mais exaustiva de
comentários e interpretações sobre problemas teológicos. Da mesma forma, uma
enciclopédia também é um conjunto exaustivo de análises sobre problemas de
qualquer disciplina e reune a história das experiências que levam ao estado
atual do conhecimento. No século XIII, as Summas encarregavam-se disto para a
ciência teológica. Llull conhecia a amplitude do universo de conhecimentos
antigos, que supera a ciência teológica e leva o homem do século XIV a pensar em
saberes que se ocupam de necessidades materiais, políticas e educativas. O
conhecimento portanto inclui saberes como a astronomia, a ótica, a física, a
história. A Ars luliana foi pensada
como um instrumento geral para suprir necessidades de conhecimento em diversas
áreas e competências humanas, para atingir com isso um aprendizado rápido de
problemas intelectuais, espirituais e materiais no qual os “artistas”
interpretam, procuram e superam a atualidade do conhecimento. Por isso a obra
luliana possui suplementos, que são obras onde nosso autor expõe o funcionamento
da Ars em cada disciplina. Uma
tentativa de Llull para mostrar a enciclopédia dos conhecimentos foi a Árvore da Ciência, uma obra que percorre
com as ferramentas da Ars os
pormenores e problemas de cada saber.
Qual foi a posição
de Llull na discussão razão-fé?
Llull
nunca opôs a fé e a razão, nem tampouco criou relações de servidão entre
teologia e filosofia. Segundo ele, as verdades da fé correspondem a realidades.
O filósofo tinha muito claro os limites do conhecimento humano, mas não por isso
deixaria de lado as faculdades intelectuais quando se tratasse de conhecer
melhor o Ser primeiro. Seguindo o hiponense, Llull contempla a alma intelectual
desde o entendimento, a memória e a vontade. O homem pode compreender e recordar
Deus, mas se não o quer, se não o ama, seu conhecimento não será completo. Neste
ponto os argumentos de Llull são muito claros: no amor do homem por Deus está o
conhecimento do Ser. O amor, mesmo sendo parte da alma, não é intelectual, não é
do entendimento, embora modifique a alma e a prepare para o conhecimento de
Deus. Llull poderia ser descrito como um apologista da fé no amor a Deus e um
cúmplice da razão na sua procura do conhecimento universal.
O
exemplo que o filósofo maiorquino deu sobre as relações entre razão e fé
tornou-se clássico: a fé é a candeia acesa que flutua no óleo, que por sua vez
está acima da água. A água é o entendimento humano. Quanto mais água ponhamos,
mais alta estará a candeia que nos ilumina. Llull insiste em que não podemos
acreditar em mentiras ou falsidades, portanto o ato de fé supõe um princípio
racional.
Qual a relação entre método e Ars?
A noção
medieval de Ars refere-se a um
instrumento ou processo intelectual para solucionar alguma necessidade do homem
e ajudá-lo a conseguir o bem-estar. Em princípio a Ars Magna é um instrumento desenhado
pelo intelecto a serviço de uma necessidade de saber. Com isso Llull perseguia o
bem-estar da convivência religiosa, a expansão do aprendizado e o interesse
geral pelo conhecimento, necessário para a perfeição do ser humano.
Se
acompanharmos o desenvolvimento do que se conhece por “método” desde seus
primeiros defensores –Bacon, Descartes- até os seus conhecidos artífices
–Galileu, Kleper, Newton-, veremos que se trata de uma técnica intelectual e um
instrumento geral para o conhecimento, que pode ser aproveitado por qualquer ser
racional preocupado com alguma disciplina ou tarefa intelectual e que ajudaria
com isso o desenvolvimento humano.
Embora a
Ars Magna e o método pareçam
distanciar-se nas suas funções e resultados, o espírito sob o qual foram criados
tem objetivos e traços que estão a seviço do crescimento intelectual do
homem.
Quais
foram as críticas a Llull feitas por Bacon e Descartes?
Alguns
intérpretes da história do método consideram que a Ars Magna representava uma extravagância
intelectual ou um forte rival na criação de um novo método para o conhecimento,
que resgataria da névoa a verdadeira ciência. A verdade é que Descartes e Bacon
mencionam Llull com nome próprio e quase em tom de rivalidade, como se esse
adversário estivesse presente.
No livro
Sobre o avanço do entendimento e as
ciências Bacon menciona Llull como o inventor de uma linguagem que pretende
revelar nos seus signos qualquer conhecimento ou matéria. O verulámio, desde o
seu empirismo, defende que o contato com signos não basta para o conhecimento e
que evocar características das coisas é impossível por meio de representações,
sem antes ter um contato direto com o objeto de estudo. No Espírito dos Idolos do Novum Organum Bacon diz da Ars Magna que é só uma Typocosmia, ou seja, uma linguagem que
promete representar a ordem das coisas sem consegui-lo.
Para
Descartes, Llull é um autor que tentou sem êxito a criação de um método que pode
ser considerado um pseudo-método, pois suas regras não são claras e a
determinação das coisas a conhecer é insuficiente, e menciona a promesa errônea
de oferecer conhecimentos gerais em pouco tempo.
Estas
hábeis críticas elevam a Ars Magna a
um nível de digno rival do novo método; por isso era necessário ofuscá-la.
É
difícil determinar por que um autor tão prolífico foi progressivamente esquecido
nas academias; até as referências a Llull desaparecerem no final do século XVII.
Leibniz foi talvez o último pensador que tomou a Ars como um intento de criar uma
filosofia a serviço do desenvolvimento intelectual do gênero humano. Hegel
simplesmente ironizou. Em nossa época historiadores da informática como Martín
Gardner consideram Llull um pioneiro desta popular disciplina.
Llull ficou à margem da filosofia com a
condenação de Eymerich, o inquisidor dominicano da Coroa de Aragão e Catalunha,
assunto que foi reforçado pelos criadores do método. Embora obras de Llull
tenham sido publicadas depois do século XVIII, se considerava o maiorquino uma
espécie de filósofo ou mágico natural que fazia experiências com influências
astrológicas, com as transformações dos elementos e as matérias, e que inventou
um método mnemotécnico. Aproveitando essa fama vários autores escreveram
tratados sobre esses assuntos e os assinaram como se tivessem sido escritos por
Llull. É o pseudo-lulismo. Isto afastou Llull da boa apreciação da
academia.
Embora a
condenação tenha sido revogada em 1419 pela Sententia definitiva in favorem Raymundi
Lulli, o antilulismo de Eymerich estendeu-se por vários séculos. No século
XVI, no ambiente da Contra Reforma, elaboraram-se os Indices librorum prohibitorum, colocando
neles qualquer autor que Eymerich tivesse citado no seu Directorium inquisitorum. Por outro
lado, a Inquisição espanhola se identificou com Eymerich e continuou proibindo a
impressão das obras lulianas.
No ano
1997 Josep Perarnau i Espelt publicou um extenso e muito bem elaborado trabalho
onde, com base na caligrafia de Eymerich, comprovou definitivamente que o
inquisidor alterou com a sua própria mão os textos lulianos, dando-lhes um
sentido até contrário ao do seu autor, para fazê-los parecer heterodoxos.