CARTA AO MAGNÍFICO
SENHOR REI DA FRANÇA
Ao ilustríssimo e magnífico senhor Filipe, pela graça
de Deus rei da França, gloriosíssimo e insigne por
muito sincera caridade. (1)
Que o menino para nós nacido, um filho que se nos deu (2),
e que ansiamos por encontrar, Jesus Cristo feito Homem, conceda-vos
bom governo e vos oriente por inteiro a procurar a sua glória
e a sua honra. Assim, clementíssimo Rei, aceitai com alegria
este opúsculo, no qual, como um peregrino, podereis de algum
modo contemplar o abençoado Recém-nascido, alcançando
a contemplação de ambas as naturezas d'Ele, que juntamente
com o Pai e com o Espírito Santo reina, Deus bendito em trindade
de pessoas. Amém.
Proêmio
Ah, Senhor! Inspirai naqueles que crêem em Vós o afeto
e a ação de fazerem-se semelhantes a Vós, e
o irrevogável propósito de manterem-se constantes
em tal pensamento, e de não terem nenhuma parte com os infiéis,
e de cumprirem os mandamentos da vossa lei. Fazei-nos, Senhor, verdadeiros
sem orgulho, humildes sem fingimento, alegres sem devassidão,
justos sem erros, serenos sem jactância, pobres sem miséria;
sem avareza, ricos; sábios mediante o estudo, sem vontade
de parecer arrogantes.
Capítulo I: Primeira Dama
Aconteceu de véspera, às margens do Sena, nas imediações
de Paris, que seis Damas se encontrassem por acaso num belo sítio
ameníssimo. São os seus nomes: Louvor, Oração,
Caridade, Contrição, Confissão, Satisfação.
Louvor, a primeira de todas, queixou-se dos homens do século
presente com este lamento:
- Ai! - disse Louvor - os homens não louvam a Deus em si
mesmo, por si mesmo, nem nos outros em razão d'Ele mesmo,
segundo pede a ordem, apesar de Ele ser essência sumamente
nobre, incomparavelmente digna pela sua suprema dignidade, e insuperável
pelo seu poder, comunicado às três divinas Pessoas,
as quais por si mesmas são de todo louvor merecedoras: mas
louvam-no fora d'Ele, em razão dos muitíssimos bens
que lhes provê, segundo a sua infinita liberalidade. Com tais
louvores, nunca me contentarei. Ao contrário, freqüentemente,
ouço triste e magoada que muitos blasfemam Deus e minimizam
o seu poder, dizem que Ele não pode por si só fazer
todas as coisas sem uma causa mediadora, como, por exemplo, sem
os céus. E, se uma vez ou outra tenho a sorte de ouvir algum
verdadeiro louvor a Ele, nada menos que mil vezes sou obrigada a
ouvir, por conta desses louvores, blasfêmias e delírios
sem qualquer juízo. Por isso, melhor me fora abandonar este
nome, e fazer-me um deserto n'alguma solidão, para não
me ver forçada a ouvir tantas coisas indignas de Deus (que
de todo louvor é digno), e assim escutar somente verdades.
Capítulo II: Segunda
Dama
Em seguida exclamou Oração:
- Oh, como estou triste e transtornada, porque tantas vezes os
homens me pedem que adore Deus (digníssimo de ser adorado:
altíssimo pela sua bondade, grandeza e poder, eterno sem
mudanças, sapientíssimo na verdade, boníssimo
por sua vontade e perfeitíssimo na sua glória), para
que, antes da glória eterna, a eles conceda e outorgue em
abundância os bens da terra. Grande maravilha é que
Deus possa suportar tal coisa de mim, e ainda me deixe viver. Ah,
se nunca os homens houvessem conhecido o meu nome, nem eu houvesse
jamais tido notícia dos homens!
E isto dizendo, chorou Oração.
Capítulo III: Terceira
Dama
Depois de Oração, falou Caridade:
- Não é em vão que estamos tristes, minha
muito querida irmã. Também eu sou a mais nobre das
virtudes, que foi concedida à vontade dos homens para que
por mim amem a Deus sobre todas as coisas, e como a eles mesmos
amem o irmão próximo, guardando sempre a ordem que
a cada um foi dada; de modo que os bens terrenos fossem comuns a
todos os bons, e a paz e a concórdia juntas reinassem entre
eles. No entanto, tudo aconteceu de modo muito diverso, pois viu-se
justamente o contrário, o que parece perturbar toda a ordem
e introduzir uma total confusão; os pobres morrem de fome,
são negligenciados, andam nus, procuram e não encontram:
enquanto os ricos se assoberbam com a abundância de seus bens,
de onde nascem a gula, a avareza e outros males sem fim. E hoje
em dia tem-se por mim ou pouca ou nenhuma consideração;
mais ainda: tenho sido totalmente negligenciada. Que pensam os pecadores
que farão sem mim? Se por ventura algum deles entrar no Reino,
comigo entrará. Ninguém poderá impedir o julgamento
do juiz eterno, nem poderá enganá-lo, sapientíssimo
como é, capaz de ver tanto o visível quanto o oculto.
Ai, quão pesada é minha dor, pois não vejo
pessoa alguma sobre a qual eu tenha qualquer poder ou possa nela
melhorar-me. E se existe alguém que tenha a mim e permanece
ocioso, é contrário à minha natureza, sendo
a si próprio muito nocivo.
Capítulo IV: Quarta Dama
Em seguida diz Contrição:
- Quando me lembro da multidão de males que existem e são
feitos no mundo, notando que as criaturas se dispõem mal,
a ponto de estarem entre as piores, muito me admira que eu possa
viver e tenha vontade de existir, mediante um ato positivo e privado.
A vontade dos homens é avessa a mim, porque quando me é
mais conveniente dispô-la ao ato de arrependimento e desgosto
pelos pecados cometidos, ela se afasta de mim, num ato contrário,
sem temer o divino julgamento que a espera. Por esse agravo estou
desfigurada e doente, toda estranha à minha natureza. A vontade,
de tal forma pervertida, é abandonada à aflição
dos suplícios eternos.
Capítulo V: Quinta Dama
Depois que assim falaram as quatro Damas anteriores (Louvor, Oração,
Caridade e Contrição), Confissão, a quinta
Dama, assim começou a dizer:
- Eu sou aquela virtude pela qual os homens sabem confessar-se
dos pecados e julgar-se culpados, a tal ponto que sentem verdadeira
contrição, minha irmã gêmea, de modo
a que o manifestado responda à própria consciência,
não permanecendo coisa alguma oculta, sem expressão
externa. Relembre a memória, examine o entendimento o que
se fez, e o modo como se fez, em ofensa de Deus ou do próximo,
pela visão, pelo ouvido, pelo olfato, pelo tato, pelo gosto,
pela maneira de falar e de quaisquer outras maneiras; e pense que
será a satisfação possível e justa;
e com todo o seu ânimo, tenha horror de seus pecados, e cumpra
a penitência imposta. Por isso me lamento e me consumo em
penas, porque poucas são as vezes que estou com os homens
quando se confessam. Que direi? Que farei? Onde estarei, se não
posso encontrar um amigo? Deus sabe até que ponto a cada
dia é mais forte e amarga minha tristeza, e que jamais terei
alegria enquanto não tiver encontrado a verdade entre os
homens.
Capítulo VI: Sexta Dama
Diz Satisfação, serva da justiça, muito obediente
e devota:
- Manda a justiça que se tire satisfação de
todo ato humano que ofenda a Deus ou ao próximo. Se é
a visão que peca, satisfarei a malfeitora com vigílias,
com lágrimas, com suspiros emanados do coração,
e a afastarei para que não veja a vaidade deste século.
Se foi o ouvido que delinqüiu, escutando coisas ilícitas,
eu o ocuparei com ouvir a palavra de Deus e escutar o ofício
divino. E, se houver faltado pelo gosto, satisfarei a delinqüência
com jejuns e me absterei de iguarias refinadas e de alimentos supérfluos,
com os quais se delicia a fragilidade humana. Os pecados do tato,
os satisfarei deixando de lado as coisas suaves e brandas e escolhendo
as duras e ásperas. Serva sou da justiça para alcançar
a virtude da castidade, segundo o que aconselha e manda a religião
cristã, e para dar a Deus satisfação da imaginação,
dos membros, das potências e de quaisquer atos humanos. Deixarei
de uma vez todos os vícios, abraçando as virtudes,
escolhendo a penitência, e seguindo o julgamento da razão
e do entendimento que é quem sentencia do delito e da sua
satisfação, para que, no final, surjam contrição,
louvor, oração, e a caridade cale os afetos. Mas que
benefício porta um tal preceito ditado pela justiça,
se em tudo e por tudo campa e reina a injustiça? Pois esta,
associada com todos os outros vícios (a saber: avareza, gula,
luxúria, soberba, acídia, inveja, ira), tolhe-nos
totalmente a mim e à justiça, que é a minha
mãe; e os homens servem mais aos vícios que à
virtude, e por isso o mundo é escuro e tenebroso.
Cada uma destas Damas tendo assim falado, decidiram abandonar o
mundo e seguir livremente por paragens desertas, para não
verem nunca mais no meio de tanta desolação homens
endurecidos pelos vícios. Contra esta decisão falou
Oração:
- Não é bom este acordo de abandonar o mundo e a
linhagem humana, que Deus nosso senhor entregou à nossa vigilância
e encarregou ao nosso cuidado, porque seria um mal muito grande,
e danos maiores ainda se seguiriam. Vindes mais cedo, a meu ver.
Há pouco nos foi anunciado que nasceu um Menino* da Virgem
gloriosa, pobrezinho e pequenino, num presépio, envolto em
poucas e pobres fraldas, proclamado Salvador do mundo e Filho de
Deus pelos anjos e os profetas. Por isso, como o Filho de Deus se
humilhou tanto ao se fazer homem, nascendo como um pequeno menino,
em lugar pobre, aproximemo-nos com audácia e lhe roguemos
com fé que Ele, tendo se humilhado dessa forma, digne-se
a ouvir-nos, para que dos corações humanos possamos
extirpar os vícios e aí semear as virtudes. De modo
que cada uma de nós cumpra o seu ofício e plenamente
realize sua ação.
O que disse Oração agradou e contentou as outras
Damas, e cuidadosamente se dirigiram a adorar o pequeno Recém-nascido.
Capítulo VII: Como encontraram
o menino
Iam, então, as ditas Damas assim falando do Recém-nascido,
com ânsia de adorá-lo, cada uma ao seu estilo. Chegadas
ao presépio onde o Menino estava, a Justiça e a Misericórdia,
como porteiras, não quiseram permitir que se aproximassem
mais, enquanto não explicassem a intenção que
tinham em querê-lo adorar e contemplar, cada uma a sua maneira,
e obter a sua graça para poder desde aquele momento andar
pelo mundo e aí produzir em sua honra muitos frutos. Para
demonstrá-lo, cada uma começou a declarar a sua intenção.
Capítulo VIII: De Louvor
E, ajoelhada diante das portas, Louvor foi a primeira a manifestar
o seu afetuoso propósito:
- Coisa justa e digna é que o Menino divino seja louvado,
porque é bom e grande, pois que n'Ele estão unidas
a ação humana e a ação divina. Não
tenho virtude bastante para louvá-lo como deve ser, nem tampouco
nenhuma outra criatura; porém quero louvá-lo conforme
permitir a minha pequenez ou a minha natureza. Este Menino é
Filho de Deus, e ao mesmo tempo é soberana bondade, grandeza,
virtude, verdade, sabedoria e suma divindade; e é Homem,
bondade, grandeza e poder criados: dentre todas as coisas é
o Ser mais alto de toda a natureza universal, por quem todas as
coisas foram feitas; e, por isso, enquanto Ele as conserva, todas
as coisas têm permanência. Esse mesmo Menino é
Deus e Homem, e o que se atribui a um também ao outro é
atribuído; e n'Ele há três naturezas, a saber,
a do corpo, a racional da alma e a divina, a qual, irrompendo nela
as outras duas, une-as numa só pessoa. Neste abençoado
Menino se realiza a exaltação de todo o universo,
porque o homem participa com todas as criaturas e Deus se faz homem.
(3) Deus Pai urdiu
este Filho seu de forma que com a sua morte redimisse a linhagem
humana, e para que com todas as suas virtudes (que neste abençoado
Menino atingem sempre o grau máximo) convertesse os homens
e entre eles agisse. Quem, então, poderá louvar como
deve ser o seu nascimento temporal? E o seu crescimento? Vós
sois o Anjo do grande conselho, Vós sois o Deus forte, o
Príncipe da paz, Pai do século futuro, cujo principado,
pela vida neste mundo, carregais sobre os ombros.
(4)
Tendo assim dito, calou-se, e falou Oração.
Capítulo IX: Da Oração
- Adoro - disse Oração - o Menino abençoado,
Deus e homem, a sua divindade, a sua humanidade e todo o bem que
há n'Ele, já que a Ele toda adoração,
objetiva e finalmente, deve ser endereçada. Adoro n'Ele a
soberana bondade, a soberana grandeza e todas as demais qualidades
incriadas; e, sendo Ele homem, adoro também essas mesmas
qualidades tal como foram criadas; e como todas as coisas foram
feitas por Ele, adoro o seu entendimento, e a sua boa vontade adoro,
e qualquer outra ação sua; e a Ele ofereço
toda a minha inteligência, todo o meu poder e todo o meu agir,
e, se mais pudesse, mais diria para a sua glória e a sua
honra. Adoro o Menino que há de sofrer a paixão, há
de ser sepultado e há de ressuscitar no terceiro dia, e com
toda a glória d'Ele adoro também a bem-aventurada
Virgem, sua sacratíssima Mãe.
Capítulo X: Da Caridade
Disse Caridade:
- Um menino nos é nascido, um filho se nos deu. (5)
O Filho de Deus é caridade incriada, e eu sou caridade criada
e serva sua. Que farei portanto por Ele? Todas as penas sofrerei
de bom grado de forma que os homens o amem e que tudo queiram e
façam por amor a Ele. Em si mesma, essa tarefa me é
leve, embora seja pesada para os homens, que me mantêm negligenciada
e ignorada, a mim e ao Nascido divino. Nasceu o Menino da bem-aventurada
Virgem, com a caridade mais inflamada; concebeu-o do Espírito
Santo, e o pariu sem dor, e com seus seios o amamenta. Os Anjos,
Arcanjos, Principados e todas as fileiras da milícia celestial
o amam, louvam e adoram, e todos os santos profetas ao mesmo tempo,
e todos os apóstolos, e a generalidade de todos os santos,
com caridade o louvaram perpetuamente na glória e o glorificaram,
e com amor sem fim o contemplaram. Ele é caridade inefável,
que excede todo entendimento. (6)
Enquanto Homem, é menino, não é a caridade
original, senão que dela participa; mas, enquanto Criador,
não é possível encontrar caridade maior que
aquela com a qual Ele ama a si mesmo (Deus e Homem) e todas as coisas
criadas, com aquela infinita caridade que é Ele mesmo. Estas
duas caridades neste Menino abençoado são tão
grandes que todas as línguas e todo o entendimento dos anjos
e dos homens não podem expressar a união que n'Ele
encontram a grandeza a virtude.
Capítulo XI: Da Contrição
Contrição disse:
- Quando recordo como este Menino há de ser entendido, amado,
louvado e reverenciado, e como na memória há de ser
eternamente guardado, não sei o que dizer, atemorizada por
excessivo pavor; e vivo em tanto temor da divina justiça,
que dificilmente teria sensibilidade e movimento se não fosse
pela misericórdia de Deus, na qual confio e tenho esperança.
Quando considero a alteza deste Menino santíssimo, que está
acima de qualquer coisa, e que, não obstante, fez-se homem,
e quando pondero de que maneira negligenciei, ingrata, o seu culto
e o seu serviço, tristeza e sofrimento me aliciam e afligem.
Mais ainda, quando considero as soberanas riquezas e as honras incriadas
e as supremas razões criadas deste Menino, que n'Ele estão
todas reunidas; e, por outro lado, as blasfêmias, os perjúrios,
as desonras, os vitupérios e todas as outras maldades sem
nome feitas contra esta Criança, tanto as passadas como as
presentes e as futuras, tanto mais padeço de tristeza e angústia
e perturbação, tal como fui e sou assinalada para
que os homens, com o coração contrito, arrependam-se
dos pecados e esperem do Deus Menino misericórdia.
Capítulo XII: Da Confissão
Disse Confissão:
- Confesso que do Filho de Deus se fez mercê para todo o
mundo, e que Ele o exaltou; pois sem este Menino, sempre santificado,
o mundo não teria podido sair do nada e não poderia
estar feito. Ele, enquanto homem, é parte do universo, e
o eleva à ordem mais alta, subsistente no eterno suposto,
e, como Homem e Deus, une os dois pontos mais distantes, isto é,
o começo e o fim.
Mais ainda disse Confissão:
- Confesso que por razão da finalidade do Menino, o universo
tem ordem e proporção, a saber: o céu é
tão grande e móvel, e estrelado, e luminoso, e esférico,
e denso. E assim Ele pode dizer-se fim dos anjos, e dos homens,
e dos elementos, e de todas as coisas. De modo semelhante confesso
que o mundo seria mais feio se o Filho de Deus não fosse
homem. A justificativa disso é que, sendo as razões
divinas infinitas em perfeição e em eficácia
operativa, sempre poderiam tornar o mundo melhor e melhorá-lo
cada vez mais; e isto não teria acabamento, coisa que repugna
a ordem do universo. Mas, uma vez que neste Menino todas as criaturas
inferiores têm alguma participação, como homem
que é, sendo Ele Deus, o universo não poderia elevar-se
mais do que unindo-se a criatura ao seu princípio criador.
Confesso também que, se todas as coisas soberanas e inferiores
pudessem falar em louvor do Menino, não conseguiriam louvá-lo
como deve ser. A razão é esta: todas aquelas coisas
são finitas, e a bondade do Menino é infinita, entre
tais extremos não pode haver proporção nem
medida.
Disse mais ainda Confissão:
- Ai, quanto me dói que ao Deus Menino não lhe seja
servida tanta honra e reverência, como conviria à sua
excelsitude soberana; em vez disso os homens ingratos deste mundo
têm em opróbrio Aquele ao qual sempre cabe louvor,
adoração, excelente amor e confissão. Vejam,
então, Senhora Justiça e Senhora Misericórdia,
o que, no que toca a este ponto, é preciso fazer, e o que
há de ser dos prelados e dos príncipes ao governo
dos quais o mundo é confiado, e que, ingratos, não
confessam mais os benefícios do Menino santíssimo,
nem neste ponto econhecem alguma vez haver errado, porque não
têm nenhum cuidado pelo amor do Menino ou, se têm, é
muito pouco.
Capítulo XIII: Da Satisfação
Satisfação disse:
- Deus é um ser eterno, infinito e perfeito em todas as
suas razões. Disto se segue que Ele é digno de ser
conhecido, amado, louvado e bendido pela criação.
Deus, conhecendo que Ele é assim, e querendo satisfazer-se
a si mesmo, dispôs o mundo para este fim previsto; o qual
nunca teria podido atingir, se o divino Menino não o tivesse
satisfeito. A tal fim, porém, tão alto e tão
supremo, não basta por si mesma a proporção
do universo, uma vez que aquele fim não tem limite. O Menino,
porém, porque é Deus, é eterno e é infinito.
Desta forma, a ordem divina, com este Menino, satisfez o universo,
dispondo-o conforme as ordens da Criança, na qual uma e outra
ordem, o eterno e o temporal, o limitado e o infinito, reluzem com
claridade suprema.
E disse mais ainda Satisfação:
- O Menino, enquanto homem, quer satisfazer Deus Pai, porque neste
mundo nada quer possuir dos bens terrenos; justo e humilde veio
ao mundo, cheio de todas as virtudes, obediente, benigno, servo
de Deus Pai, e por isso será pendurado no patíbulo
da cruz, e será chagado e martirizado, e pelo amor do Pai
sofrerá com alegria muitos outros opróbrios. E também
Deus Pai quer satisfazer o Menino, pondo-o como fundamento da santa
Igreja católica - uma vez que sobre a pedra, que é
o Cristo menino, foi fundada a Igreja Católica - dando-lhe
o império romano para defender a fiel comunhão de
todos aqueles que em seu nome serão chamados cristãos,
e para extirpar os outros reis e os outros tiranos. Portanto, agora,
reis e príncipes, segundo está escrito, (7)
compreendei; deixai-vos advertir, juízes da terra, porque
nascido é o Menino do qual se escreveu toda aquela profecia.
E dará também prelados e clérigos, entre os
quais culminará o soberano pontífice vigário
geral seu, para que se salve a unidade da fé. Bem que o Santo
dos Santos, prometido desde os dias antigos e agora nascido menino
filho de Deus, já se satisfaz com o dom de Deus Pai; vê
nada menos que alguns prelados futuros que, abandonando-O, parece
que comem ouro, e que nada da terra lhes basta, nem para eles nem
para seu sangue maldito. A divina justiça, contudo, para
a qual todas as coisas são nuas e evidentes, não poderá
sustentá-los por muito tempo, no futuro; antes fará
que se afundem nos eternos suplícios, dos quais lhe são
devedores, pois tendo abandonado Jesus Cristo menino, não
quiseram aprender a doutrina nem receber entendimento.
Capítulo XIV: As Damas
louvam Menino Jesus
Depois que as ditas Damas terminaram suas respectivas falas, a
Justiça e a Misericórdia permitiram que elas entrassem
e adorassem o Recém-Nascido, aprovando a sua intenção
e as palavras que tinham dito. E, vendo o Menino, as mesmas seis
damas, ajoelhadas e com a cabeça inclinada, adoraram-no e
cantaram cada uma um cântico.
Louvor, a primeira, disse:
- Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de
boa vontade. (8)
Glória, louvor e honra sejam dadas para Ti, Cristo Rei Redentor,
ao qual a inocente infância cantará o piedoso hosana.
(9)
Oração disse:
- Adoro-te, oh Cristo Jesus, unigênito de Deus Pai, porque
vieste a este mundo para redimi-lo.
Caridade cantou este cântico:
- A minha alma se derreteu assim que encontrei o meu Amado, por
cujo amor sempre enlanguesci. (10)
Bendito, então, é aquele que vem em nome do Senhor.
(11)
Contrição disse assim:
- Tem piedade de mim, segundo a tua infinita misericórdia.
(12)
Confissão exclamou:
- Confesso-te, Pai do Século futuro, Rei do céu e
da terra, porque és Filho de Deus vivo que vieste a este
mundo. (13)
E depois, Satisfação:
- Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito; (14)
não assim como quero: faça-se sempre a tua vontade.
(15)
Depois de tudo, a divina Bondade e todos os outros atributos eternos
de Deus quiseram se fazer conhecer às ditas seis Damas.
Capítulo XV: Da Divina
Bondade
Disse a Bondade divina:
- Sois aceitas por mim, fidelíssimas servas do meu santo
Menino. Eu sou a Bondade singular e absoluta, entidade singular;
e enquanto sou absoluta, sou essência simples; e uma vez que
o absoluto não pode constituir-se com mais nada, sou intercambiável
com o bem absoluto, que que gera na sua inteireza o bem absoluto
engendrado, do qual e pelo qual o Espírito Santo é
o Bem absoluto procedente. Digo absolutos naquilo que lhes é
comum e essencial. Os supostos, contudo, são relativos e
distintos segundo sua propriedade relativa. Porque estes mesmos
supostos são absolutos em mim; mas é de um outro modo
e por uma outra propriedade que sou o Pai que produz e, ainda de
outro modo, o Filho produzido inefavelmente, e de um terceiro modo
o Espírito resultante. E isto é necessário
para que haja pessoas distintas que tenham entre elas referências
mútuas; e para que haja propriedades singulares que constituam
e distinguam o suposto ou pessoa; de outra forma eu não teria
natureza absoluta, incluindo toda perfeição, se de
mim mesma não pudesse produzir o Bem perfeito, ou não
subsistisse indistinta nos três supostos: então eu
seria estéril, infecunda e de todo alienada de minha natureza.
Assim como vejo que do sol nasce o raio de luz, e de ambos (do raio
e da luz) o calor, assim do Pai surge o Filho, e de ambos o Espírito
Santo, que é o amor. E seria um exemplo em tudo e diretamente
semelhante se o calor, o raio e a luz fossem intercambiáveis
com a essência do sol, como se constituíssem uma só
coisa. Mas não seria pertinente que na natureza criada se
encontrasse alguma semelhança perfeita, havendo assim uma
suprema, singular e misteriosa perfeição nas coisas
divinas. Estando portanto em minha total perfeição,
não necessitando de nada para o que quero fazer e não
havendo para mim qualquer impedimento (pois não me impediria
nada que fosse anterior a mim, porque algo assim não existe,
nem que fosse posterior, pois que todo ser posterior participa do
meu ser e é finito, enquanto Eu sou infinita, como a luz
infinita, e aquilo, em comparação, é como uma
pequena mancha colorida, perceptível na minha infinidade),
profanos são aqueles que, sendo Eu una, negam que seja trina,
subsistindo em três diferentes e distintas pessoas, que entre
si mantêm relações mútuas.
Disse mais ainda a divina Bondade:
- Em mim mesma quero produzir um efeito bom e singular, que seja
causa de toda a ordem do universo, que pelo oráculo dos profetas
declarei que viria, e já é vindo, e é aquele
singular efeito prometido, isto é: este Menino que por essência
é bom, participa da bondade e, por esta razão, é
fácil de conhecer, porque, sendo Filho de Deus, fez-se homem;
e não o pôde impedir o poder de ninguém; porque
não é mais forte que eu nenhuma entidade do universo.
Ordenei que fosse adorado por todos os anjos, e toda criatura fiel
e que me conheça se alegrou. Eu, com este Menino, visito
o mundo; e com toda a minha integridade a Ele me sou entregue. Compadeço-me
de todos; a todo aquele que está impedido dou saída;
tiro da prisão os encarcerados, de modo que toda coisa no
mundo criado possa repousar. A Misericórdia e a Verdade estão
com o Menino desde o berço: A Justiça e a Paz o beijam,
(16) de forma
que ao mundo apareçam a sua benignidade, (17)
a justiça, a misericórdia, a paz e a tranqüilidade.
E seguiu dizendo a divina Bondade:
- Assim como é justo que eu compreenda em mim toda a bondade
do universo, é eqüitativo que a eternidade divina contenha
nela mesma a novidade de todas as coisas, ficando ela, porém,
sempre absoluta e sem mudança. Porque, tal como eu sou bondade
absoluta, com faculdade de produzir outras bondades, da mesma maneira
a eternidade, contendo nela mesma tudo aquilo que é feito
de modo novo, pode ser causa da mudança e do tempo. Por esta
razão não hão de ser escutados aqueles que
afirmam que o mundo necessariamente existe desde a eternidade. (18)
E ainda disse mais a divina Bondade:
- Merecedora sou de ser conhecida e para sempre louvada e amada.
Aquilo que me é digno e justo não pode faltar-me;
portanto, não posso ser conhecida e louvada plenamente senão
no paraíso; assim, horrivelmente blasfemam aqueles que negam
a existência do paraíso, onde eu sou conhecida, louvada
e eternamente glorificada. Porque ninguém pode impedir aquilo
por mim mesma faço para honra e glória minha. (19)
Isto disse a Divina Bondade.
Capítulo XVI: Da Grandeza
de Deus
Depois desta, falou a Grandeza de Deus:
- Eu sou - disse - de uma essência tão excelente e
grandiosa, que não tenho medida, nem termo, nem fim. Não
existe ente possível acima do meu, e tudo o mais que está
abaixo, necessariamente de mim tomou o seu ser. Tomá-lo de
mim é bom por si mesmo, tal como a própria bondade,
que é absoluta, em mim tem a sua fruição essencial,
por sermos ambas uma só e mesma coisa. Por esta razão
não pode me impedir nem o mal nem qualquer outra coisa que
esteja mais abaixo do mal, uma vez que a minha essência o
excede e ultrapassa imensamente, infinitamente. Tendo isso em conta,
não seria correto o critério de quem julga que Eu
não sou simplesmente imensa, a não ser somente em
razão da duração, como se não fosse
mais uma grandeza eterna; porque de qualquer modo não é
possível que uma outra coisa me ponha fim, limite ou termo
quanto ao grau de entidade, bondade, poder, verdade ou virtude.
Antes, sendo simplesmente absoluta, não obrigada, não
coagida, posso criar, agir, mover e dispor da maneira que queira,
seja através do céu, seja sem qualquer intermédio,
com ou sem quaisquer outras causas segundas, às quais Eu
comunico a virtude de ser concausa. E assim como o pensamento [mens]
sempre pode inventar [effingere: representar, retratar, reproduzir,
figurar] um novo nome [numerum: número, medida, quantidade,
classe, ordem, consideração, partes de um todo, coorte,
legião, compasso, cadência, ritmo, verso], muito mais
posso Eu acrescentar uma nova espécie ao universo. E como
todas as razões atribuídas à divindade são
mútua e reciprocamente conversíveis (a bondade, por
exemplo, é eternidade, e eternidade é bondade, e isto
mesmo pode predicar-se da unidade, da potestade, da virtude, da
verdade etc., porque todas existem na infinita e simples essência,
e Eu mesma sou também divindade), corretamente se deduz que
a minha essência simples, absoluta e imensa não pode
ser incluída no limite de nenhum lugar, como tampouco pode
ser a eternidade incluída no tempo; e como sou tão
grande, quis fazer no mundo uma obra máxima: comunicar-me
toda a este Menino, e estar n'Ele compreendida [ab eoque comprehendi];
todavia, como sou incompreensível, o mundo compreende o Menino
e ao mesmo tempo não o compreende, sendo Ele de uma só
vez Deus e Homem. E os que assim não se conduzem, mais e
mais não poderão compreendê-lo, se não
elevam e alçam o entendimento à consideração
do Menino Jesus, prometido ao mundo para a sua salvação.
E esta é obra de virtude não finda, mas imensa e infinita.
Porque, se meu entendimento entendesse que Eu era finita e que finitamente
agia, necessariamente isto mesmo a vontade quereria, e detestaria
o contrário, pois a vontade segue o juízo do entendimento.
Contudo é uma idéia tola e débil que Eu seja
finita e que só atue finitamente. E como é possível
que a vontade queira isto, e não, ao contrário, o
que é atraído [v. p. 46, var. 386/390] simples e extremamente,
e que em mim não haja mais que a perfeição
de uma grandeza transferida? Portanto o meu Ser está acima
de tudo o que é finito, acima de tudo o que tem termo, acima
de qualquer grau de grandeza. Manifesta-se, assim, que nada, nem
grande nem pequeno, nunca pôde impedir a minha ação
sobre o Menino abençoado, tal como a minha imensidade abraça
e contém tudo o que está na natureza, tudo o que por
toda parte pode encontrar-se na mesma natureza. E aqueles que o
contrário afirmam não terão no céu parte
com esse Menino.
Isto disse a Grandeza divina.
Capítulo XVII: Da Eternidade
divina
Acrescentou a divina Eternidade:
- Eu sou a duração sem fim, do eterno até
o eterno, ao mesmo tempo verdade do tempo com eminência e
essência pura, sublime e perfeita, de modo que em mim não
é possível nenhum acréscimo, nem há
fora de mim coisa alguma que possa obstaculizar minha ação.
Porque, sendo absoluta em eternidade, sou absolutamente boa, absolutamente
grande, onipotente, verdadeira, não passível de impedimento.
Por isso me comprazo em mostrar ao mundo este Menino, temporal e
eterno, mortal e imortal. Homem e Deus, fim de todas as coisas,
cuja ação não pode ser impedida, existente
comigo desde o princípio, antes de tudo o mais. Pois todas
as causas segundas foram dispostas por mim conforme o que me agradou.
E Ele compôs comigo toda a criação. Por este
motivo não me conhecem aqueles que proclamam que o mundo
necessariamente é eterno porque em mim não há
novidade, nem mudança no meu agir. Desde a eternidade está
expresso em mim o arquétipo do mundo: o Verbo consubstancial,
imanente ao pensamento fecundo, do qual, no momento em que satisfiz
a eterna sabedoria, provieram todas as coisas, e continuam a provir
a cada dia. Agora nasceu no mundo de forma que todas as coisas que
foram n'Ele formadas, n'Ele repousem, eminentemente reformadas.
Que pouco me conheciam e que pouco conheciam a minha fecundidade,
aqueles que pensam que o mundo deva necessariamente ser eterno,
de modo que Eu, cansada de nada fazer, inútil e vazia, estivesse
entorpecida desde a eternidade. Exatamente como aquele que pensava
que o caminhar e o movimento do corpo fossem a principal operação
da alma para que ela não caísse em torpor. Porque
eu, em mim mesma, não sou infecunda, antes uma mente eterna
que produz a cada momento o íntimo Verbo eterno, comigo relacionado
como verdadeiro filho com seu verdadeiro Pai, dos quais procede
um terceiro suposto eterno, subsistente por ele mesmo; em cujas
Pessoas Eu sou princípio, meio, fim e complemento. E vem
daí que, em toda coisa, a perfeição, a consumação
e o complemento consiste em três pontos. Assim é que,
havendo em mim uma tão íntima, tão imensa e
tão perfeita emanação, ação e
progressão, para nada necessito de qualquer ação
externa, como se jazesse em torpor, como se não estivesse
sempre atuando. No entanto, quando quero e da maneira que quero,
pela exuberância da minha fecundidade, me espalho para fora
de mim mesma, e segundo a capacidade dos seres me comunico, porém
nunca deixando a atividade íntima, porque não há
nenhuma coisa exterior que possa receber integralmente meu vigor.
E por isto, torno a dizer, sem a operação íntima
da minha imensa fecundidade, seria Eu como aquele que obra de uma
maneira enervada e enlanguescida. Pois Eu e o intelecto divino essencialmente
somos uma e a mesma coisa; de onde advém que tudo aquilo
que há em um por razão da essência, por força
se há de achar semelhantemente no outro; porque tudo aquilo
pertence a um ser que é um mesmo por razão da essência
única, de modo que entre eles é impossível
que haja diferença. E como o entendimento, que é inteligente
por essência, continha em si mesmo o entender e aquilo que
se entende, logo também Eu entendo em meu interior o eternizante,
o eternizar e o eternizado; de outro modo não seria essencial
a identidade entre Eu e o intelecto, e conseqüentemente o intelecto
essencialmente supremo não seria essencialmente eterno, nem
Eu seria essencialmente entendida, nem a minha essência o
seria intrinsecamente. Professar esta crença seria opinião
profana e impia. E assim como aqueles três referidos são
entre eles realmente distintos no entendimento, ainda que sejam
inteiramente o mesmo na essência absoluta; assim também
em mim são diferentes por relação e por um
existir mesmo em essência. E o mesmo poderíamos dizer
de qualquer dignidade divina.
A Eternidade disse ainda:
- Eu sou dignidade singular, bondade grande e suprema, à
qual repugna que haja coisa exterior que lhe seja igual, de modo
que se salve a minha singular unidade. Daí decorre que de
falsas premissas retiram argumentos aqueles que igualam a duração
do mundo com a minha; porque assim como a minha bondade é
singular e não tem igual, assim é também necessário
que seja singular a eternidade, de modo que se serve a singularidade
de todas as dignidades, as quais se identificam com a divindade.
E aqueles que afirmarem o contrário deste Menino, fim de
todo o universo, nunca alcançarão repouso, antes a
minha justiça, que é a minha companheira e uma mesma
coisa comigo, os exterminará por rebeldes à sabedoria
divina.
Capítulo XVIII: Da
Divina Potestade
Em seguida disse a Potestade divino:
- Eu sou o que sou por mim, e não por outro; entidade singular
em mim e por mim mesma; um só Deus, não contingente,
porque sou sumamente necessária; não sou possível
porque não sou condicionada nem passível de impedimento
por nenhuma outra potência; eterna em mim mesma, e sempre
Ente, ato puro, e por isto nenhum outro agente pode reduzir ou minorar
a minha potestade; antes toda outra causa, comparada com a minha
potestade, é como o machado na mão do carpinteiro:
um instrumento de trabalho. Em mim está a ordem de origem
necessária e intrínseca, da qual toda outra deriva.
E ainda disse mais:
- Eu sou a potestade absoluta, de mim e para mim mesma simplesmemte
ordenada; Eu concedo exteriormente o ser, enquanto que o efeito
é produzido para participar e receber o meu ser. Não
sabem o que é piedade aqueles que por isto assinalam limite
e termo à minha virtude, de modo que não produza o
infinito. Mas em mim mesma produzo o infinito, sendo simplíssima
e de perfeição sumamente infinita a minha absoluta
virtude; fora de mim, em troca, não produzo tal coisa, e
não por impotência minha, senão porque isto
repugna ao efeito: como poderia haver fora de mim um outro ser infinito,
um outro bem infinito, uma outra verdade infinita, um outro poder
infinito e uma outra imensidão infinita? Sem contar que isto
seria contrário à minha singularidade. Por esta razão,
tudo isto criado, porque criado, é forçoso que tenha
fim e termo: contudo Eu, na ordem suprema e por sobre qualquer ordem,
sou absoluta em potência e essência, sou simplesmente
infinita. E este meu Menino, finito e infinito, restrito e absoluto,
criado e incriado, enquanto é criado, é finito; e,
não menos, está todo em mim, porque é Deus,
por quem são feitas todas as coisas, e é homem em
Deus; e Eu sou Deus, do qual provêm todas as coisas; e Eu
e Ele somos um mesmo Deus e uma só singular potestade. Portanto,
sobre qualquer coisa escutai-o como a mim. Além de que, sendo
Eu a virtude absoluta e a infinita entidade, posso criar simplesmente
fora de mim aquilo que nem é ato, nem potência na natureza;
e isto por mim mesmo, sem intermediário, sem nenhuma disposição
prévia. De mais a mais, porque sou potestade simplesmente
absoluta, Eu sou o criador dos anjos, da alma, do céu e de
tudo aquilo que se move, e posso unir o novo e o antigo sempre que
me aprouver, e também aumentar o número dos seres
criados. Igualmente, como sou por mim mesma suficientíssima,
e absoluta por essência, posso subsistir sem anjos, sem o
universo, sem alma e sem nenhum objeto exterior, de modo que estas
criaturas estão de mim a uma distância infinita, e
o meu ser e o meu agir as vencem e superam imensamente. Que pode
então impedir o meu querer e o meu poder? Não obstante,
Eu os salvo e os conservo desde a eternidade, porque sou potestade
não passível de impedimento, sumamente boa, que livremente
me propago e me comunico.
E disse mais ainda a divina Potestade:
- Como em mim se acha toda perfeição, virtude e operação,
posso sustentar sobre um eterno suposto a natureza humana, coisa
que sobreveio com o Menino meu, no qual não esteve assumido
um suposto ou uma pessoa humana, senão uma natureza de homem.
E em toda a ordem da criação, de alto a baixo, não
há nada que seja bom que Eu não tenha feito; e até
aquelas coisas que para a natureza são impossíveis,
por mim são feitas sem dificuldade. Por isto não podem
ser nomeados sábios filósofos, senão impiedosos
e sofistas, aqueles que neguem a encarnação do Verbo
de Deus, persuadidos de que isso não é possível;
nem aqueles que tampouco não crêem que os demônios
foram criados espíritos bons e que por impulso próprio,
sem mim, resvalaram na malícia; nem os que pensam que os
homens não viverão por toda a eternidade, desconhecem
que a minha misericórdia é absoluta e onipotente,
e se neste mundo não concede a recompensa, é que a
reserva para a outra vida, que não terá fim: contudo,
como a minha misericórdia é também muito justa,
eles, no século futuro, experimentarão a minha justiça
punitiva. Se eles não podem encerrar o céu nas suas
mãos, tampouco a potestade de sua natureza pode encerrar
a minha potestade. Por que então, sem juízo, deliram,
crendo que - só pelo fato de que uma donzela não possa
parir sem lesão da virgindade apenas com o poder natural
- uma donzela santa, sendo virgem, não pôde dar a luz
ao meu Cristo, que os meus santos profetas prometeram que seria
nascido de uma virgem? A virtude natural não é mais
que uma serva humilde da minha potência, porém, a minha
virtude é a suprema potestade, que tem feito muito facilmente
o inacessível à natureza. Quis que uma virgem parisse:
a natureza, humilde serva minha, não disputando comigo sobre
a possibilidade, obedeceu, e, perturbadas as leis naturais, me pari
um Menino, o qual, enquanto homem, há de se inscrever na
linhagem dos outros homens, embora tenha vindo ao mundo de modo
diferente dos outros homens; porém, enquanto engendrado por
mim antes dos séculos, é diferente de toda espécie
humana, e sobre todas as outras coisas elevado. Negam, ainda, que
as almas, separadas dos seus corpos, subsistiriam, porque a mim
não me conhecem, que muito freqüentemente, uma vez separadas,
as restituí aos próprios corpos, de modo que os homens
adquirissem entendimento e conhecessem o meu poder. E o meu Filho
pequeno, mal chegado ao mundo, ressuscitará dentre os outros
diante dos olhos de seus inimigos. Eu, Potestade suprema, sou amante
dos homens; e num Homem só, pequeno e imenso, que é
o meu Verbo, os amo a todos, e aceito por filhos adotivos aqueles
que hão de acreditar nele. Oxalá que os homens assim
o entendessem, não desconfiassem da sua imortalidade, que
eu lhes concedi, e antes, como seria prudente, me louvassem e me
agradecessem. Eu sou ato, e as formas das coisas são atos,
e dependem sem incomparavelmente mais de mim que das leis da matéria.
E quanto mais simples e espirituais as formas, menos elas são
escravas da matéria grosseira e temporal; e isto, pelo minha
imutável ordenação. Por este motivo os espíritos
e as inteligências celestiais estão sempre livres de
tais vínculos. As almas racionais (que são as formas
mais simples e espirituais depois daquelas outras, celestiais e
supramundanas), em troca, ora estão unidas à matéria,
ora são livres. E as formas dos seres inferiores aos homens
estão sempre unidas à matéria e dela nunca
se vêem livres, porque são grosseiras, compostas e
suscetíveis, e nada têm de espiritual que possa elevar-se
até me conhecer. Por que dizem, então, que nenhum
ato pode subsistir sem a sua própria conseqüência,
impiamente desconfiados da sua imortalidade? Sendo assim, miseráveis
como não se pode dizer, serão obrigados a ver com
castigos e tormentos o que agora negam e recusam. E é de
se admirar que não se persuadam mais, haja vista o que eu
lhes sugeri pelo oráculo dos meus profetas, que são
os homens mais santos do mundo. De tanto verem que a matéria
(escória do mundo e a coisa de maior menosprezo) imitou a
minha eternidade, creram que era minha coetânea, e coeterna,
e inclusive o primeiro Ser sempiterno; contudo desconhecem que nunca
houve um Ser eterno. Por quê, então, só pelo
fato de os corpos estarem formados por elementos que são
contrários entre si, afirmam - contra o que eu declarei -
que não haverá ressurreição, como se
a freqüente dissolução dos corpos importasse?
Porventura a minha potestade, no reino da paz, não pode suspender
aquela guerra dos elementos contrários? A paz que se conhece,
mesmo nesta turbulenta região, é o fim da guerra.
No fim, todas as coisas repousam, e nele não é preciso
entender coisa que seja desordenada, pois que toda a ordem aí
se encaminha. Não me é difícil, na ressurreição,
atribuir aos espíritos e aos corpos aquela mesma plenitude
incorpórea que agora atribuo à luz e a outras coisas.
Por que consideram impossível que permaneça a mesma,
com a força do meu poder (a qual é imensa para produzir
qualquer coisa sem tempo nem movimento), se a alma permanece, se
permanece também a matéria malgrado a sua fluidez?
Não me parece nem um pouco difícil (ao menos para
mim, que posso tudo) reunir o corpo e a alma num átimo. Acaso
podem os homens, quanto à água antes recolhida, mas
depois espargida e difundida em gotas inumeráveis, reuni-la
mais uma vez, de modo a restar numericamente a mesma? Portanto a
minha potestade seria bem débil, se não pudesse congregar
e reunir as almas e os corpos que antes separei. Direi mais: os
fiéis que crêem no meu Cristo prometido, Menino justo
nascido para a salvação do mundo, serão ressuscitados
por Ele sem dúvida alguma, no último dia do mundo,
para a vida eterna; em troca, os que não creram, com castigos
eternos sentirão todo o peso do meu poder, juntamente com
seus corpos, obrigados a aceitar o meu juízo sem libertadora
misericórdia. Quem me pode resistir? - disse a Potestade
divina. Enviei o meu Filho à terra, de modo que os homens
consigam a vida que não terá fim, se forem piedosos
e santos, como o meu Filho é piedoso e santo. Aqueles que
seguirão para os castigos eternos se desviarão do
caminho e serão punidos contra o meu querer. No meu querer
(Eu que vou entregar o meu Filho, pelo amor dos homens) antes se
encontra a vida que a morte.
Assim disse a Potestade divina.
Capítulo XIX: Da Sabedoria
ou Entendimento Divino
Em seguida, o divino Entendimento disse:
- Eu sou absoluto, e absolutos são o meu objeto e o meu
entender. Porque Eu não seria inteligente absoluto se o meu
entender, entendimento e inteligível não fossem absolutos.
E não seria Eu absoluto inteligente, inteligível e
entender se não fosse absolutamente três supostos distintos,
e três pessoas com mútuas relações; pois
com qualquer um deles sou o mesmo, com essência única
e indivisa. Sou simples, não composta, senão absolutamente
acima de todo vínculo de potência e de todo nexo material.
Vejo claramente o passado, o presente e o futuro, e todo o possível
ao qual a minha virtude pode se estender. E absoluto é o
meu nome: O que sou; a saber: o Deus único. Há em
mim toda claridade, potência, bondade para tudo prever e desfrutar.
Como dizem, então, que Eu não compreendo todas as
espécies, nem todos os indivíduos, nem todos os materiais
do universo? Porque, sendo Eu inteligência simples, absoluta
e infinita, tão potente quanto inteligente, compreendo imaterialmente
todas estas coisas em mim mesma, no Verbo único, este que
agora nasceu segundo a carne, para que toda carne se salve. Pois
a minha virtude e o meu entender pode estender-se até isto
que é nada, nem em ato nem na potência da natureza.
Sou grande, poderoso e bondade infinita, e quero que, entre os homens,
antes me louvem e entendam muitos entendimentos que um só.
Por isto entendo - disse o Entendimento - que, assim como sou absoluto,
mediante o entender sou o ordenador absoluto, intrínseca
e extrinsecamente: intrinsecamente, porque sou trino (inteligente,
inteligível e entender); extrinsecamente, porque ordeno todas
as coisas inteligíveis e naturais (as naturais, pelos seres
inteligentes; as inteligíveis, por mim mesmo). Aqueles divergentes
de mim, (20)
admitem um entendimento agente não inteligente (porque não
tem em si mesmo a intelecção) e um entendimento possível
inteligente, e não sabem que na minha fecundidade há
três supostos que neles mesmos subsistem. E se suspeitam disto
partindo do entendimento humano, por número querem entender
numeralmente a unidade, sendo assim que o que é preciso é
centrar-se na unidade, e da unidade passar ao número, numeralmente;
pois entre o entendimento humano e eu, que sou simples e absoluto,
há uma grande diferença e dessemelhança. Não
admira então que, dispersos entre todas as coisas dispersas,
deslizem em vários erros, servindo-se tortuosa e perversamente,
e não certa e ordenadamente, de uma filosofia que Eu lhes
outorguei com finalidade ordenada e certa?
E ainda disse mais o Entendimento:
- Entre mim e a primeira inteligência que vem depois de mim
não existe diferença por contrariedade, senão
tal grau de diversidade que ultrapassa infinitamente a sua natureza.
Igualmente, existe aí inteligência e ordem, pois que
por mim é, e a mim se refere. Se, onde há conveniência
e ordem, é preciso que haja uma inteligência que as
ordene, então Eu serei a sua causa final, eficiente e ativa.
Os iludidos que pensam o contrário não sabem o que
é a ordem.
E mais ainda disse o Entendimento divino:
- Eu, sendo absoluto, entendo imediatamente todas as coisas, e
o faço como satisfaz à minha vontade. É bem
verdade que, assim como a unidade primeira, com a segunda, causa
uma terceira unidade, Eu freqüentemente na natureza faço
sucessivamente uma coisa mediante uma outra, comunicando a elas
a semelhança de minha potência ativa. Não estão,
portanto, suficientemente instruídos das coisas de Deus os
que dizem que eu não entendo imediatamente todas as coisas,
porque não as faço todas imediatamente; pois não
estavam presentes quando de mim saiu o universo sem mediação
de outros, e agora parece que surgem pela mediação
de outros. Se fossem instruídos como deve ser, saberiam que
eu posso entendê-lo e fazê-lo todo sem mediação
de outrem, mas que também pela comunicação
da minha bondade, e exatamente como o dispus desde a eternidade,
ordeno e disponho por mediação de outrem o primeiro
nascimento das coisas que irão saindo uma depois da outra.
E ainda disse mais o Entendimento:
- Eu sou absolutamente poderoso e inteligente, e poderoso me entendo
acima de todo o curso da natureza, porque nem o possível
nem o impossível naturalmente em nada podem me impedir, de
forma que sou de uma ordem e natureza superior. Em verdade, não
posso agir mal, com falsidade ou vício, porque sou a bondade,
a virtude e a verdade absoluta, e esmorecer da minha bondade ou
verdade seria decair da minha natureza. Nem posso conceber que Eu
possa enredar-me em contradição, ou seja, que possa
fazer que o que é bom seja ruim, nem que o que é verdadeiro
seja falso, ou ao contrário, porque estas coisas não
são inteligíveis para nenhum entendimento. Logo, não
serei considerado impotente, já que não posso fazer
coisas contraditórias: isto não seria agir, senão
deixar de agir. Por que, neste caso, que faria? Alguma coisa que
seria e não seria. Por isto o meu Filho nasceu para vós
no mundo, de modo que os que não vêem vejam, e os que
não entendem entendam a bondade, a grandeza, a eternidade,
a potestade, a sabedoria. Vinde a Ele os que estejam faltos de bondade,
e o agradem; vinde os que são pequenos, e adquiri grandeza;
vinde os que são temporais e adquiri vida eterna: vinde os
febris e os doentes, e recebei força, vigor e potência:
vinde os que não têm juízo, e recebei a sabedoria
divina, não a do céu, do Menino no qual tenho morada
desde toda a eternidade.
Depois de ter dito isto de si mesmo, o Entendimento divino calou.
Capítulo XX: Da Divina
Vontade
Em seguida disse a Vontade divina:
- Eu sou a Vontade singular e absoluta; não condicionada,
porque sou o que sou em mim e por mim; sou o que quero e não
há ser mais absoluto que Eu que possa me impedir; assim é
que sou libérrima em agir. E como sou vontade absoluta, Eu
mesma sou absoluta bondade, grandeza, eternidade, potestade e entendimento;
virtude, verdade e perfeição; glória, justiça,
misericórdia e os outros atributos comuns da divindade. E
como sou absoluta, tenho supostos relativos quanto a mim, e distintos
eles entre si, nos quais sou absoluta; porque a minha condição
de absoluta é infinita, porque se assim não fosse
não seria absoluto o querendo, o querer e o querido: coisa
que me faria estar ociosa e repugnaria à verdade.
Porém disse a Vontade:
- Sou absoluta, inclinada a amar, como o entendimento a entender,
e quero ter três supostos reciprocamente amoráveis,
sem os quais eu não seria absoluta, pois quero ter em mim
o amante, o amado e o amor; e engendrar o amado (21)
com toda a imensidão de bondade, grandeza, eternidade e potestade,
e que de ambos provenha o amor. Uma mesma coisa são o querendo,
o querido e o querer; tenho então o que quero, porque quero
ser absoluta nos três supostos, coeternos e co-idênticos.
Quis, igualmente, e desde a eternidade o dispus, que só houvesse
um universo, e que a ordem e proporção de tudo quanto
nele há, se salvasse, e fosse no seu gênero perfeitíssimo.
Quis que uma pessoa da minha natureza se unisse no suposto, e é
o Menino que procurei, Jesus Cristo, Homem e Deus. E isto pude pela
virtude que sou Eu, simples, inenarrável, infinita e aperfeiçoadora.
Longe estão de mim aqueles que com teimosia sustentam que
o Filho de Deus não pode encarnar-se: Eu testifiquei e testifico
ainda, que sou presente (22)
no meu Filho, como já disse a Moisés e aos profetas.
E a mim aprouve que o mundo não fosse eterno, senão
criado há pouco, e que nascesse inteiramente novo para demonstrar
a minha maior virtude e potência. Não há mudança
em mim, porque desde a eternidade quis que em tal determinado momento
e no tempo prescrito cada coisa recebesse o seu ser, segundo a sua
capacidade para ser: ou duradoura, ou fluida e transitória.
De mais a mais disse:
- Haja vista que Eu sou o meu querer absoluto, desde a eternidade
tomei um ato positivo; e existindo este ato simples e único,
que os compreende todos e cada um deles, nunca em mim houve ato
negativo ou privativo senão por camparação
com a criatura exterior, que entende imperfeitamente.
E finalmente a Vontade disse:
- Assim como nos homens não há um intelecto único,
assim tampouco há em todos uma vontade única; e prefiro
ser entendida por muitos entendimentos humanos que só por
um, pois a força de uma mônada ou unidade mais se manifesta
para muitos números que só para um; e mais me satisfaz
ser amada por muitas vontades que por uma só. Quis unir um
entendimento humano e uma vontade humana ao entendimento e vontade
divinos, de modo que a sua sabedoria fosse exemplar, espelho de
toda sabedoria humana e angélica, e o amor seu, espelho e
exemplo de todos os amores celestiais e terrenais. Jamais me teria
unido com quem não tivesse celestial inteligência,
como a tem este Menino pequeno, descendente de Abraão, Cristo,
senhor de todas as coisas, celestiais, terrenais e infernais. (23)
Capítulo XXI: Da Virtude
Divina
Disse a Virtude divina:
- Infinita sou, essência simples, poderosa, possível
por mim e de mim; nada existe que impeça a minha ação
infinita em bondade e grandeza. Absoluta sou, eterna, necessária,
tal como assim o exige a minha simples e infinita perfeição,
para que seja ampla em todos os atributos divinos, em todas as razões
eternas e sempiternas dignidades. Logo, a divina eternidade é
por si mesma necessária bondade e virtude, e sua mútua
predicação é essencial, não como homem
e risível, sujeito e paixão, se predicam deles mesmos.
E ainda disse:
- Como sou virtude infinita e absoluta, não sou ociosa,
senão fecunda, tendo de toda a minha essência e virtude
um Engendrado e um Pai, com cada um dos quais sou uma mesma coisa,
cada um dos quais me quer compreender toda, e para além dos
quais não me posso estender; por isso sou trindade infinita.
Depois, a divina Virtude acrescentou:
- Assim como sou infinita agindo interiormente, também o
seria produzindo exteriormente se a infinidade não repugnasse
totalmente à criatura. Igualmente, produzi um efeito nobilíssimo,
o pequeno Recém-Nascido que veio. Quis que um eterno suposto
o sustente em si mesmo, quanto à natureza humana. Vinde a
Ele os que são surdos, e os restituirá a audição;
vinde os cegos, e os devolverá a visão; vinde os doentes,
os fracos, os coxos e os aleijados, e Ele vos curará, pois
Eu sou a virtude onipotente, n'Ele tenho a minha morada e Ele a
tem em mim. A todas as coisas dou solidez e saúde, e como
Eu, também Ele por semelhante modo.
Capítulo XXII: Da Divina
Verdade
Depois disto, disse a Verdade divina:
- Eu sou simplesmente a primeira, necessária por mim e de
mim, e disto infinitamente da falsidade: o falso não é
possível em mim, nem é possível qualquer coisa
que possa contra mim, pois que sou absoluta, necessária,
e verdade primeva; assim é necessário que seja verdadeiro
tudo aquilo que é em mim; e assim na bondade divina e na
grandeza e nas restantes dignidades, porque em todas elas sou necessária
e fundamental, como em mim mesma, tal como sou a mesma necessidade,
essência e princípio, bondade simples e grandeza indivisível.
De tal coisa se se gue que sou a verdade essencial nas coisas divinas;
de maneira que, assim como a potestade de Deus é infinita
em duração, assim o é também em verdade;
de outro modo, a divina potestade seria mais una com a eternidade
do que com a verdade, o que é falso e impossível.
Mesmo assim digo: é preciso necessariamente que isto seja
verdade, para que assim a mesma potestade seja infinita na ação
da verdade como o é na duração, a fim de que
lhe pertença por si mesma a infinitude da ação
e do poder; como acontece com a eterna duração, assim
também com a verdade; e o mesmo que demonstrei de mim e da
eternidade, é preciso afirmar a respeito da bondade e das
restantes dignidades divinas: de outro modo, Eu seria, por mim mesma,
mais verdade do que a potestade é, por si mesma, potestade;
e isto não pode ser, pois tal como a potestade é absoluta,
eu também o sou exatamente enquanto verdade absoluta. Por
esta razão, Eu, verdade, não estou com aqueles que
asseguram que a potestade não é infinita em poder,
senão tão só em duração.
E disse mais ainda a Verdade:
- Assim como no entendimento e na vontade se dispõem diferentes
correlatos (porque são primeiros, necessários e absolutos),
do mesmo modo eu também os possuo em mim, porque sou primeira,
necessária e absoluta. E o mesmo que digo de mim, pode ser
dito sobre a bondade e as outras dignidades, porque todas somos
uma essência primeira, verdadeira, e por si mesma necessária
e indivisa.
Além disso, também disse a Verdade:
- No entendimento divino estão o inteligente, o inteligível,
o entender; da mesma forma é preciso que em mim aconteça
o mesmo verdadeira, primitiva e necessariamente, de modo que o meu
ato seja puro, primeiro e necessário. Porém eu não
o posso fazer senão com a distinção de seus
correlatos, de modo que cada um deles seja uma pessoa própria,
e todos três uma só essência, um só intelecto,
uma só natureza, uma só unidade, bondade, grandeza
e eternidade, uma só potestade, uma virtude e uma verdade.
Disse mais ainda a Verdade:
- É verdade (e necessário) que em todas as razões
divinas primárias não há senão três
supostos relativos ou divinas pessoas, de tal modo que todas são
ao mesmo tempo, e cada uma delas é simultaneamente uma essência
e natureza: de outra forma haveria uma multiplicação
e confusão infinitas, e se perderia a singularidade ou a
propriedade de cada relativo; porque a sua singularidade é
a sua propriedade, a qual não poderia permanecer distinta,
porque teria muitas semelhanças de que não se poderia
distinguir, haja vista que a distinção necessariamente
se dá entre opostos. Portanto, ou a distinção
se confundiria, ou pela mesma razão se introduziria uma vaga
e infinita multiplicação; daí a necessidade
de dispôr três correlatos e não mais. E ainda
mais, é conveniente - disse a Verdade - que, pela bela visão
do universo, haja realmente uma verdade criada, que domine todas
as verdades e os seres criados, e que seja a máxima verdade
possível: tal verdade é Jesus Cristo, o meu Filho,
nascido pequeno para destruir com a sua humildade as grandes falsidades
do mundo, de modo que, a todos apascentando na verdade, os conduza
às eternas pastagens. Ele é o caminho, a verdade e
a vida, e sem Ele não seria o universo perfeito. Aqueles
que, iludidos pelas falsidades de seus erros, não irão
segui-lo e escoltá-lo, lançados a pavorosas trevas
exteriores e a morte perpétua (Eu, que sou a verdade, antecipadamente
lhes anuncio), o epsiarão com suplícios eternos; e,
pelo contrário, aqueles que o seguirão, em perpétuo
regozijo e júbilo conhecerão que a vida indeficiente
e sempiterna é companheira da verdade.
Capítulo XXIII: Da
Glória de Deus
A Glória divina assim falou:
Eu sou a Glória máxima, tal como sou de mim, por
mim e por causa de mim, e não de outra ou por outra razão;
do que se segue que não é possível uma glória
maior que a minha. Mas eu, e a minha grandeza, e a imensidade da
minha grandeza, sou o mesmo. A necessária conseqüência
é que sou infinita; de outra forma, existiria uma glória
maior que poderia ser-me obstáculo, e também Eu não
seria infinita, o que é impossível. Sou então
a glória máxima, o gáudio maior e o maior deleite
que algum entendimento humano possa conceber, e da qual jorra todo
deleite e gáudio. Por outro lado, não seria Eu glória
infinita se a minha potestade fosse maior pela duração
que pela minha glorificação; pois então a eternidae
seria maior que Eu, coisa não possível de nenhum modo.
Sou o mesmo, e uma não excede a outra, porque ambas são
absolutas e simples por natureza, e infinitas; e é a mesma
imensidade minha igual à sua, e mais além de tal magnitude
ou maximidade não pode haver nenhuma outra infinidade; porque
ou seria maior que a minha imensidade ou maximidade, o que é
impossível; ou seria igual, coisa que não consente
a minha singularidade; ou seria menor, e em tal caso já não
haveria infinitude. Sou então a infinita e única glória,
e conseqüentemente a absoluta bondade, a singular imensidade
e eternidade, e todas as outras dignidades absolutas, que constituem
uma mesma essência. De mais a mais, Eu não seria glória
infinita se não fosse equipotente à divina bondade,
grandeza e eternidade, e se estas não tivessem em mim e por
mim a glorificação infinita; a qual não poderiam
ter se em mim não houvesse três supostos, um do outro
diferente, assim como são eles mesmos (enquanto é
agora um glorificante infinito, que produza de todo ele e de toda
a sua natureza um glorificado infinito engendrado, e que de ambos
decorra o infinito glorificar animado) e se todos três, e
não mais, não fossem toda a minha essência,
substância e natureza. Se assim não fosse, introduzir-se-ia
confusão, a unidade perder-se-ia, e também a infinidade
e a glorificação; coisa que é impossível.
Torno a dizer que sou a glória infinita; e é bastante
digno que a minha infinita glória seja conhecida e amada;
e isto é e será por este pequeno Menino, o meu Cristo,
nascido da Virgem Maria, o qual conhece perfeitissimamente a minha
glorificação infinita que tenho em mim e em todas
as minhas dignidades. Isto é digno e justo, porque por nenhuma
glorificação maior poder-se-ia ver exteriormente a
minha máxima glória interior.
Disse além do mais a Glória divina:
- Eu sou substância espiritual, não sensível
ou imaginável, de forma que as potências inferiores
não podem intuir um objeto tão alto como eu sou. E
por isto uma substância sensível, corpórea e
imaginável como é a substância do homem não
pode receber de mim grande glorificação sem mediação,
e esta mediação é este Recém-nascido,
Jesus Abençoado, Deus e Homem. E por isto os bem-aventurados
verão na pátria a sua humanidade com visão
física, e ouvirão as suas palavras profundíssimas
e altíssimas, e por este caminho também sua alma alcançará
a máxima e eterna glorificação.
Capítulo XXIV: Da Perfeição
de Deus
Disse a divina Perfeição:
- Sou a Perfeição simples por mim, em mim e de mim;
e isto, naturalmente; donde de segue que nada pode impedir o meu
ser e o meu agir. E sou perfeita por mim mesma naturalmente, e não
posso debilitar a perfeição, porque desde a eternidade
recebi todo o meu ser. Quer dizer: não me estendo do imperfeito
ao perfeito intrinsecamente, porém do perfeito posso produzir
o perfeito e concluir o que de ambos procede; e isto de modo que
naturalmente possa existir por intermédio do agir, assim
como naturalmente existo pelo existir; isto é, não
me compete mais existir por existir ou por ser realmente, que por
agir, porque o meu agir é o meu existir e o meu produzir;
e é em mim produzindo uma perfeição por si
mesma, a qual permanece perfeita no seu próprio nome (isso
é, distinto pela sua propriedade que o distingue); e ambos
produzem uma perfeição, distinta numericamente e permanente
(quer dizer, enquanto uma propriedade distinta, procedente de ambos,
e permanente com o seu próprio nome, isto é, distinguida
pela sua propriedade). Do que se segue uma necessária e natural
relação de um com o outro por si mesmos, e por isto
Eu sou, com toda eu mesma, naturalmente perfeita, existente em três;
e de outro modo, sem as ditas pessoas mutuamente distintas, não
posso perfeita e naturalmente existir e agir, haja vista que a minha
perfeição há de ficar em três, que essencialmente
são uma e só coisa, isto é, um Deus.
E ainda mais disse a Perfeição:
- Perfeita sou na máxima bondade, grandeza, eternidade,
potestade, etc. E isto é assim por causa do meu perfeito
e natural existir e agir, que são uma só coisa. E
assim como eu sou em qualquer das outras dignidades por meu fazer
natural, assim se encontra em mim qualquer delas por seu natural
ser e agir, e, portanto, sou o infinito existir e agir, e toda a
divina essência, naturalmente e simplesmente infinita.
E mais ainda disse a Perfeição:
- Como sou naturalmente perfeita no existir e no agir, quero que
fora de mim haja um efeito perfeito, por Eu ser uma causa extrínseca
perfeita: aquele efeito é o Filho da Virgem, Homem e Deus,
Homem perfeito e Deus perfeito porque constitui-se de perfeita natureza
divina e de perfeita natureza humana. Este Menino vem a ser como
que o centro do universo, do qual distam todas as linhas, e todas
nascem dele, de modo que o mundo seja perfeito e ordenado. Porém
os homens maus e viciosos corrompem a perfeição do
universo, enquanto desconhecem este Menino, o caluniam e blasfemam;
e por isto eles mesmos também se destróem e se afastam
de mim a uma distância infinita. Eu mesma dou cumprimento
e perfeição às partes das quais o homem naturalmente
se constitui, que são agora os primeiros componentes, as
potências vegetativa, imaginativa, intelectiva ou raciocinativa,
a fim de que qualquer homem seja uma perfeita individualidade na
sua espécie. E a eles concedo um céu perfeito, a terra,
e os animais e outros produtos da terra, de modo que perfeitamente
me estimem, me entendam, e com estes mesmos dons meus me cubram.
Porém estes perversos fazem-no ao contrário, de modo
que alguns se voltam para os bens caducos e transitórios.
Por outro lado, aperfeiçoo o intelecto do homem, para que
perfeitamente me entenda, ainda que não me comprenda, pois
não é capaz, sendo ele finito e Eu essência
infinita e incompreensível. Porém eu o aperfeiçoo
tanto quanto lhe basta e não é capaz, tanto quanto
lhe corresponde e o merece; não obstante, não é
aperfeiçoado infinitamente, antes em determinados sujeitos
as paixões se encorajam e o entendimento perde força
por culpa dos sentidos, pois, como os animais irracionais, se apegam
a deleites e quimeras sensuais, e isto que Eu faço bom por
natureza eles o tornam doentio; e, blasfemando, atribuem-me o que
me repugna, e me negam o que me pertence. Por isto ficarão
excluídos do conforto eterno e não serão aperfeiçoados
em meu Filho, que foi entregue ao mundo para a sua máxima
perfeição, antes serão condenados a um eterno
suplício sem fim.
Capítulo XXV: Da Justiça
Divina
Depois falou a divina Justiça:
- Eu sou a justiça, porque confiro igualdade entre todas
as coisas; de onde a Justiça é chamada a que iguala
o agente, o agível e a ação; e isto de modo
excelente, isto é, entre o Pai e o Filho e o Espírito
Santo. Também confiro igualdade, porque por mim todas as
razões divinas no agir e no existir são consubstancialmente
iguais, e a mesma essência divina está distante de
toda desigualdade. Eu, a Justiça, também confiro igualdade
porque afirmo que o poder divino tanto é infinito no que
espeita ao seu poder de agir (isto é, à sua virtude
ativa), quanto é infinito na sua duração; de
outro modo Eu não seria Justiça igual e co-eqüitativa
entre as razões divinas, porque mais atribuiria duração
que virtude ativa, e o mesmo poder-se-ia dizer da bondade e das
outras dignidades; porém isto é inconveniente e repugna
a minha natureza; donde se segue que sou Justiça eqüitativa,
e que o poder divino é tão absoluto em sua virtude
ativa quanto em sua duração. Além disso, Eu
assevero que os relativos iguais coexistem igualmente no entendimento
divino e na divina vontade, assim como também na divina bondade
e nas dignidades restantes; e isto tal como todas as razões
divinas são por mim igualmente existentes, ativas e uma mesma
essência. Todas são, por essência, idênticas.
Por isto todos os relativos hão de se colocar igualmente
em todos. Por outro lado, Eu sou eqüidade e justiça
porque digo que todas as correlações são igualmente
as três divinas pessoas (distintas somente e por igual em
suas mútuas relações) e que todas ao mesmo
tempo são igualmente a mesma essência, substância
e natureza, um Deus singular e absoluto; por isso que aí
não há mais perfeição em uma pessoa
que na outra, nem essencialmente mais nas três que em uma
só. E é coisa digna e justa que tal Deus, tão
justo, tão poderoso e tão grande, seja conhecido e
amado pelos anjos e pelo seu povo. É digno, de mais a mais,
que assim como Deus é a causa primeira, ótima e máxima,
também haja, fora d'Ele, um efeito ótimo e máximo:
tal é este Menino, o qual, sendo verdadeiro Deus e Homem,
nasceu da bem-aventurada Virgem Maria. Se um efeito melhor supõe
uma causa melhor, e é tão melhor a causa quanto é
melhor o efeito, não parece que máxima e propriamente
se possa dizer ótima uma causa, senão quando tem um
efeito ótimo, e mais ainda se o efeito fosse absolutamente
o melhor possível. Contudo, o melhor e mais nobre efeito
que pode haver é o recém-nascido Menino, o Cristo
Nosso Senhor. Mais ainda, digo que é coisa boa e justa que
eu castigue os maus retribuindo o mal com o mal, e recompensando
os bons, dando a eles, pelo bem que fizerem, prêmio e bem-aventurança.
E Eu não poderia fazer isto que é necessário
se não houvesse, ao mesmo tempo, o paraíso e o inferno,
já que não são suficientes os castigos e as
recompensas nesta vida. Porque são muitos os que pecam todo
o tempo de sua vida, e muitos os que por todo o tempo de sua vida
fazem o bem: aqueles nenhum mal receberiam, e estes pouco bem, para
não dizer nenhum. Seria então contra a minha justiça
se a estes eu não concedesse algum bem, e semelhantemente
algum mal aos outros. Isto não é possível.
É necessário, então, admitir aqueles dois lugares,
e que sejam sempiternos. Os que o contrário afirmam, permanecerão
num lugar duríssimo. Vai contra a minha justiça que
o intelecto de todos os homens seja o mesmo, de modo que, morto
o homem, não permanecesse dele mais do que permanece de um
cavalo, do boi ou do leão, e cessassem em absoluto todas
as penas e todos os prêmios depois da morte. Contudo, o homem
que venera e conhece Deus nesta terra está endereçado
a uma finalidade mais alta; semelhante, na operação,
aos anjos, faz-se partícipe de sua sorte: o homem bom, da
dos anjos bons, e o homem mau, da dos anjos maus; assim, com os
bons receberá prêmios ou com os maus experimentará
suplícios sem fim. Eu sou Deus - disse a suprema Justiça.
Estão errados aqueles que dizem que Deus não entende
as coisas particulares, pois concede e retribui a cada um particularmente
segundo as suas obras; e tudo o que se faz fora de mim é
particular. Porventura Eu faço coisa que eu não entenda?
Tudo o que faço, faço-o pelo intelecto; e porque sou
a Justiça absoluta e tenho poder absoluto, sei e entendo
todas as coisas em seu ser próprio.
E ainda disse mais a Justiça:
- Tudo o que há no mundo é meu na sua totalidade,
pois que Eu e Deus somos o mesmo. E eis assim que o meu Filho unigênito,
que é justíssimo recompensador dos bons e vingador
dos maus, nasceu no mundo; todas as coisas d'Ele, minhas são,
e as suas são minhas: d'Ele são o céu e a terra,
e tudo o que contêm. Veio ao mundo para ensinar justiça
e fazer justiça, de modo que o o mundo se convertesse a mim,
que sou a sua mãe. E vede aqui que estou preparada para receber
da mão do meu Filho caríssimo o mundo purificado e
redimido por Ele, deposto todo aquele rigor que por culpa do pecado
do primeiro homem até agora exerci com toda justiça.
Eu tinha trancado as portas do céu; vede aqui que agora os
franqueio ao meu Filho e a todos aqueles que são da sua parte.
Eu tinha aberto os abismos; vede aqui que agora os fecho aos amigos
de meu Filho, e aos inimigos de meu Filho a eles franqueio. Ele
se fará príncipe sobre toda a terra (24)
(vede no futuro os pontífices do meu Filho constituídos
príncipes), de modo que não violem os santos direitos
que a eles foram outorgados, pois Eu, a Justiça, sou a mãe
d'Ele. Fazei justiça e evadi o eterno perigo das vossas almas.
Capítulo XXVI: Da Divina
Misericórdia
A divina Misericórdia foi a última a falar, e disse
assim:
- Sou a absoluta divina bondade, grandeza, eternidade, potestade,
virtude, verdade. E por isto sou absoluta em conceder graças,
e perdoar os pecadores, tal como sou gozo absoluto dos justos e
dos pecadores, se pela sua malícia não se perdem;
na qual se permanecem, não podem esperar gozo algum. De outro
lado, entre Eu e os homens pecadores há virtudes intermediárias,
que são as minhas servas, pelas quais os homens podem me
merecer, adquirir e possuir com grande desfrute; porque se o pecador
pratica contrição dos seus pecados, e deste modo pela
contrição se justifica, Eu o justifico infundindo-lhe
a graça; e se é prudente, fugindo do pecado e dos
maus e escolhendo o bem, Eu o faço sensato por não
querer os pecados e desejar as virtudes; e se é forte de
coragem contra os vícios, Eu o faço mais, prometendo
a ele os bens eternos; e se é predisposto à temperança,
Eu lhe darei a justiça, que é minha irmã. E
se assim o homem se habitua a estas virtudes, neste caso está
bem disposto para receber de mim graciosamente os hábitos
da fé, da caridade e da esperança, que para ele valerão
o perdão dos pecados. Ao contrário, não tenho
nada a ver com os pecadores, presas dos sete pecados mortais: avareza,
gula, luxúria, soberba, preguiça, inveja, ira; nem
podem ser estes vícios intermediários entre eu e os
homens pecadores, antes aí entra a minha irmã (a saber,
a Justiça), castigando-os e fazendo por mim ao mesmo tempo
justiça e vingança. Os homens adormecidos nos pecados
esperam ter-me no fim, e acreditam enviar-me uma esperança,
que não me alcança, porque é disforme e indigna
de aproximar-se de mim. Contudo, a esperança, informada pela
caridade e educada pela contrição, merece aproximar-se
de mim e impetrar perdão pelos pecadores, para que possam
participar de mim, de modo que tal esperança é um
núncio bom, verdadeiro e legítimo. Em troca, aquela
outra esperança, senão que todas mais merece ser chamada
presunção.
Disse mais ainda a Misericórdia:
- Quando o pecador contrito de coração me transmite
a esperança de modo que lhe perdoe os pecados e lhe conceda
parte de mim mesma, Eu sou a promotora inicial daquele primeiro
anúncio: o pecador apenas se sente contrito e se prepara,
sempre socorrido por meu auxílio, porém não
pode ser mais extensivo; pois sendo Eu soberana e ele inferior,
somente a Deus pertence perdoar os pecados e infundir a graça.
Por esta razão, é coisa justa e digna, não
podendo o pecador seguir mais adiante, que eu o determine e lhe
perdoe os pecados. Porém, quando o pecador diz: "Quero
estar em pecado, de modo que, estando em pecado, usufruo alguns
deleites, esperando simplesmente da divina misericórdia que,
no tempo futuro, há de me perdoar os pecados, quando eu lhe
pedirei perdão com contrição, confissão
e satisfação", grande é o engano deste
pecador, imaginando participar de mim sem que Eu dele participe,
mais ainda, estando longe de mim a uma infinita distância.
E a razão é porque não me estima por mim mesma,
senão por interesse próprio. Este amor não
é inspirado pela caridade nem pela justiça, pois a
caridade e a justiça mandam que os pecadores devem amar a
Deus mais que a si próprios.
Mais disse ainda a Misericórdia:
- Em mim não há quantidade, pois sou infinita, e
o meu agir não é finito. Por este motivo, ao perdoar
os pecados ou infundir a graça, procedo absolutamente; em
troca, o pecador, uma vez que é finito, age finitamente.
Por isto os pecadores não hão de perder a esperança
em mim, porque Eu sou capaz de perdoar, mais que os pecadores de
pecar.
Finalmente, disse a Misericórdia:
- O menino que está no presépio é verdadeiro
Deus e Homem. E Ele, enquanto Deus, é misericórdia;
e, enquanto homem, suplica a mim, que sou Deus, que perdoe os pecados
dos homens e lhes infunda a graça. A bem-aventurada Virgem
Maria é Mãe do Menino, e é misericordiosa;
agora ela me roga e continuamente me rogará que perdoe os
pecadores, porque, por natureza, sou da sua linhagem, e da linhagem
do meu Filho Jesus Cristo. Tampouco os anjos, os arcanjos e todos
os santos cessarão de rogar, a seu tempo, misericordiosa
e justamente, pelos pecadores, pois sabem que os deleites do céu
não têm termo, e as angústias do inferno não
têm fim, e eles amam os bons e odeiam os maus. Verdade é
que eu, por suas orações, faço muitas graças,
e farei ainda mais, e perdoarei muitos pecados. Direi ainda: mais
quero infundir e outorgar muitas graças e perdoar muitos
pecados do que ser rogada; de modo que as preces venham de baixo,
e Eu esteja muito alta. Que devem eles fazer então? Preparem-se
os pecadores a receber tal mercê mediante a contrição,
a confissão, a satisfação e a caridade, louvando
a mim e adorando o abençoado Menino, o meu Cristo, para que
eu lhes perdõe os pecados, e ter-me-ão graciosa, abundante
e para todos frutuosa. E se eles me rogam que Eu seja tal para eles,
Eu quero também que eles sejam tal para mim, e que ouçam
o meu Filho, que veio ao mundo humilde, pobre e misericordioso,
e estende as suas misericórdias sobre todas as suas obras.
Assim falou a divina Misericórdia.
Capítulo XXVII: Preces
das seis Damas
Depois de ouvirem tudo o que disseram as doze Rainhas ou Imperatrizes,
a saber, as Razões Divinas, maravilhando-se com a profundidade,
sublimidade, amenidade e beleza, as ditas seis Damas falaram entre
elas dizendo:
- Se os pobres da terra ouvissem e entendessem tais palavras, elevadas
e amenas, em todo o mundo não haveria senão um só
povo cristão, assim chamado por razão do Cristo, nascido
menino, verdadeiro Deus e Homem.
E então, suspirando e chorando com o grande júbilo,
joelhos na terra e altas as mãos ao céu, cada uma
delas ao seu modo, cantou um cântico. (25)
A primeira cantou esta cantilena:
- Ave, alvorada, que agora te ergas, trazendo ao mundo o seu dom,
a desejada alegria.
A segunda cantou:
- Deus vos salve, Madre pia, doce vida, júbilo e caminho,
trazei-nos o Filho de Deus.
A terceira entoou isto:
- Salve, Rainha dos Céus, Mãe do Rei da glória,
triclínio de toda honra.
A quarta Dama disse:
- Ave, Rainha gloriosa, honra de todas as virgens do céu,
da terra e do mar.
A quinta dama cantou isto:
- Eu vos saúdo, do mar estrela, Mãe e ama de leite
de Deus, portal do alto paraíso.
A sexta se expressou assim:
- Ave, oh Virgem Maria, nave de toda a graça, arca do Espírito
Santo.
Findas estas cantorias, rogaram à sacratíssima Mãe
e virgem que intercedesse diante de seu Filho abençoado,
de modo que elas fossem excitadas nos corações dos
homens, a fim de que sempre a pudessem servir como servas fidelíssimas.
Atendeu a muito benigna rainha, Mãe de Deus e da misericórdia,
às preces das seis Damas, as quais, depois de terem humildemente
beijado o pé do Menino Jesus, partiram muito consoladas.
Capítulo XXVIII:
Dedicatória e preces ao Rei Felipe de França
Esta visão teve Raimundo em Paris; a qual não muito
depois, em benefício do povo cristão e maior honra
do Menino Jesus, quis deixar por escrito, e acabou de redigi-la
em Paris mesmo, na noite de Natal do ano da encarnação
de mil trezentos e dez. (26)
E, concluída, a ofereceu ao magnífico e glorioso Felipe,
rei da França, ao qual elevou alguns muito humildes pedidos.
O primeiro, que para maior honra do Menino santíssimo haja
vista que ao mesmo rei, sobre todos os outros monarcas da terra,
têm poder singular a justiça, a verdade, a fé,
a caridade, a esperança na bem-aventurança, a dignidade
do reino com a fortaleza, a magnanimidade com a temperança,
a largueza com a prudência, a vontade de bem agir com a potência,
a humildade, a devoção e a religião cristã,
a piedade, a benignidade, a sabedoria, a castidade e, em resumo,
muitíssimos dons naturais, gratuitos e infundidos) seja de
seu agrado ser defensor da fé cristã assim como protetor
da Igreja, vigiar os seus nobres e os prelados eclesiásticos,
de modo que todas as coisas se façam com boa ordem, sem confusão,
extirpando do seu reino todos os vícios e nele plantando
todas as virtudes em todo grau de perfeição; de modo
que o seu reino não somente se diga, senão que em
realidade seja, cristianíssimo; e o seu reino seja espelho
e exemplo para todos os reis cristãos em todas as virtudes
próprias do ofício real.
A segundo pedido foi que seja do agrado de sua majestade cristianíssima
banir os ditos e os livros de Averrois e desterrá-los e extirpá-los
do Estudo de Paris, de forma que daqui em diante ninguém
se atrevesse a citá-los, lê-los ou ouvi-los comentar,
haja vista que são uma podridão de erros asquerosíssimos
contra a nossa muito santa Fé, e que (o que é ainda
mais perigoso) naqueles que os transmitem engendram, cada dia mais,
muitos e graves erros novos. Porque é coisa torpe na boca
de cristãos que a nossa santa fé seja mais improvável
que provável, e outros inumeráveis absurdos, que com
insolência propalam aqueles que professam a herética
doutrina de Averrois.
O terceiro pedido foi que seja do agrado do magnífico rei
cristianíssimo criar no seu Estudo de Paris algumas cátedras
nas quais fossem ensinados diversos idiomas dos infiéis,
de modo que pessoas devotas, sábias e letradas, adestradas
em diferentes línguas, deste reino cristianíssimo
(com plena autoridade e amplas bençãos do santo pai)
fossem enviadas para todo o mundo universo a pregar o evangelho.
Se neste reino fosse ditada uma ordem semelhante, logo seria adotada
em outros reinos e terras, e com a graça de Deus, que nunca
falha para com os bem dispostos, seriam muitíssimos os que
pelo amor de Cristo desejariam ser martirizados, como os apóstolos
e seus discípulos. Seria bom que esta ordem fosse observada
e durasse muito tempo, para que se fizesse um só rebanho
e um só pastor, conforme está profetizado (27),
de modo que toda a linhagem louvasse e, conhecendo-o, estimasse
Jesus Cristo, Filho de Deus, que agora é vituperado, negligenciado,
ignorado.
- O quarto pedido foi que o rei sereníssimo tivesse a benignidade
de rogar e exortar o pai santo e os conselheiros da santa sé,
que de todas as ordens militares fosse feita uma só ordem,
que, lutando contra o povo infiel, recuperasse a Terra Santa, e
que ele rogasse também a contribuição de dízimos
e outras generosas ajudas para a defesa e o aumento da nossa santa
fé e para a conquista dos que estão fora dela. É
coisa bem justa que um rei tão piedoso erga tal pedido, como
defensor que é da fé, para a maior honra do Menino
santíssimo, e que procure com o zelo mais atento este negócio,
ao qual o senhor papa e os seus mais próximos conselheiros
estão obrigados mais especialmente, enquanto súditos
mais especiais do Santo Menino sobre o qual a Santa Igreja está
fundada, de modo que por todo o universo o Menino Jesus seja adorado,
para que seja fechado o caminho que desce para o inferno, aberta
a porta do paraíso, e todas as milícias celestiais
regozijem-se em plenitude. E se isto for intentado, não se
poderá desconfiar do auxílio de Deus e do Cristo salvador
e da sua Mãe a Virgem Santíssima, a qual, com toda
a multidão dos bem-aventurados, não cessará
de rogar a seu Filho glorioso que neste assunto ajude os seus servos,
os guarde e defenda.
Depois que Raimundo elevou ao rei estas súplicas, retirou-se
da sua presença tendo posto o livro nas suas mãos;
e o confiou a Jesus Cristo, pela glória do qual o compilou,
a fim de que quisessem prosperar aqueles pedidos e comover o coração
do rei e de todos os príncipes das terras de cristãos
para que os levassem a efeito, de modo que, por toda parte, fosse
conhecido, honrado e amado, e que, assim como é digno, o
reino e o império sempiterno fossem tributados à Virgem
Gloriosa e ao seu Filho abençoado, Deus encarnado e dela
nascido no mundo, o qual, com o Pai e o Espírito Santo, teve
igual honra e glória por séculos e séculos.
Assim acaba o pequeno livro do piedoso eremita Raimundo, Do nascimento
do Menino Jesus.
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