Introdução
Começa aqui o livro sétimo, a respeito
das bestas.
Despedindo-se do filósofo, pôs-se Félix [1] a caminhar por um vale repleto de árvores e fontes. Tendo-o
cruzado, encontrou dois homens de cabelos e barba longos, vestidos
mui pobremente. Saudou-os e foi por eles saudado.
- Belos senhores, disse-lhes Félix, de onde vindes e a
que Ordem pertenceis? Porque, pelas vossas vestes, bem parece que
entrastes em alguma Ordem.
- Senhor, responderam-lhe os dois homens, estamos vindo de terras
distantes e atravessamos uma planície próxima daqui,
onde um bando de animais selvagens tenta escolher seu rei. Pertencemos à "Ordem
dos Apóstolos", [2] representando nossas vestes e nossa
pobreza a conduta que tinham os Apóstolos enquanto estiveram
neste mundo.
Admirou-se muito Félix de os dois homens terem ingressado
em Ordem tão elevada como aquela dos Apóstolos e
disse-lhes estas palavras:
- A Ordem dos Apóstolos é a mais nobre de todas
as Ordens e quem nela professa não deve temer a morte, e
sim mostrar o caminho da salvação aos infiéis
que estão no erro, bem como dar aos cristãos testemunho
de vida santa, tanto pelas obras como pelas prédicas: pois,
o homem que esteja em tal Ordem não pode deixar de pregar
e fazer todas as boas obras ao seu alcance.
Estas e muitas outras palavras disse Félix aos dois homens
que se diziam da Ordem dos Apóstolos.
- Senhor, retorquiram eles, não somos dignos de levar a
mesma vida perfeita dos Apóstolos; todavia, procuramos representar
a imagem de sua conversão, através de nossas vestes,
de nossa pobreza e da peregrinação que fazemos pelo
mundo, indo de país em país. Temos esperança
de que Deus há de enviar ao mundo homens de vida santa,
professos da Ordem dos Apóstolos, os quais, donos de ciência
e da boa palavra, saberão pregar e converter os infiéis,
com a ajuda de Deus; haverão também de dar bom exemplo
aos cristãos pela sua vida e palavras santas. Para que Deus
se mova de piedade e os cristãos desejem o surgimento desses
homens, procuramos representar a imagem dos Apóstolos.
Agradou-se bastante Félix do que lhe disseram os dois homens
e tendo com eles chorado copiosamente, acrescentou estas palavras:
- Ah, Senhor Deus, Jesus Cristo! Onde estão o fervor santo
e a devoção que costumavam existir nos Apóstolos,
os quais para Vos amar e conhecer não temiam nem os sofrimentos
nem a morte? Bom Senhor Deus, oxalá seja do vosso agrado
a chegada breve dos tempos em que se torne real a vida santa que
estes homens com sua imagem representam.
Dito isso, Félix recomendou a Deus os santos homens e se
dirigiu para o local onde os animais selvagens procuravam escolher
seu rei.
Capitulo I: Da eleição do rei
Numa linda planície regada de águas alegres reuniram-se
muitas feras ansiosas de eleger seu rei. Pelo acordo da maioria,
o Leão seria o rei; entretanto, firmemente contrário
a essa escolha, dizia o Boi:
- Senhores, à nobreza do rei convém a beleza corporal;
ele deve ser grande, humilde e não causar danos a seu povo.
O Leão não e um animal grande, nem vive de ervas:
ao contrário, come animais. Sua palavra e voz nos fazem
tremer de pavor quando urra. É minha opinião que
deveis escolher o Cavalo como rei, pois é um animal grande,
bonito e humilde; além disso, é ligeiro, sem orgulho
aparente e não come carne.
O que o Boi disse agradou sobremaneira ao Cervo, ao Cabrito e
ao Carneiro, assim como aos demais animais herbívoros. Da.
Raposa, [3] porém, apressou-se em se pronunciar diante de
todos, dizendo:
- Senhores, ao criar o mundo, Deus não o fez com a intenção
de que o homem fosse conhecido e amado; ao contrário, criou-o
para que Ele próprio fosse conhecido e amado pelo homem.
E segundo esse entendimento, quis Deus que o homem fosse servido
pelos animais, apesar de que esse mesmo homem se alimente de carne
e de ervas. Não deveis, senhores, ter em conta a opinião
do Boi, que odeia o Leão pelo fato de este se alimentar
de carne; deveis antes seguir a regra e disposição
que Deus instituiu nas criaturas. [4]
O Boi, por sua vez, com seus companheiros, reagiu às palavras
de Da. Raposa, que alegou que o Boi defendia fosse o Cavalo feito
rei por ser herbívoro. O Boi e seus companheiros estavam
bem intencionados ao escolhê-lo, caso contrário não
haveriam de pregar que se fizesse rei ao Cavalo que, como eles,
se alimenta também de ervas. Não deviam acreditar
em Da. Raposa que preferia, dizia o Boi, fosse o Leão feito
rei não por sua nobreza, mas porque ela vivia dos restos
deixados pelo Leão, uma vez alimentado com as vítimas
de suas caçadas.
Tantas foram as palavras de uma e outra parte, que a corte se
perturbou, interrompendo-se a eleição. O Urso, o
Leopardo e a Onça, que esperavam ser eleitos, pediram que
se prolongasse a sessão o tempo necessário para que
se determinasse o animal mais digno de ser rei. Da. Raposa, adivinhando
que os três alongavam a eleição na esperança
de um deles vir a ser rei, disse o seguinte diante de todos:
-Procedia-se numa igreja catedral à eleição
de um bispo, estando o capítulo dividido porque os cônegos
queriam que se fizesse bispo ao sacristão daquela igreja,
homem mui sábio nas letras e rico de virtudes. O arcediago
e o mestre do coro também pensavam eleger-se bispo, opondo-se
ambos à escolha do sacristão. Aceitavam mesmo que
se fizesse bispo um cônego de belo porte e sem nenhuma ciência,
além de fraco de caráter e luxurioso. O capítulo
inteiro estava atônito com o que diziam o arcediago e o mestre
do coro. Tomando então a palavra assim falou um dos cônegos:
- Se o Leão se torna rei e o Urso, a Onça e o Leopardo
se opõem a sua eleição, serão para
sempre malquistos pelo rei. Se, porém, o Cavalo se torna
rei, e o Leão lhe faz alguma ofensa, como poderá ele
se vingar não sendo animal tão forte quanto o Leão?
[5]
Compreendendo o exemplo citado por Da. Raposa e temerosíssimos
do Leão, o Urso, a Onça e o Leopardo concordaram
com sua escolha e quiseram que o Leão se tornasse rei. Graças
assim à forca do Urso e às demais feras carnívoras,
e a despeito dos animais herbívoros, elegeu-se rei ao Leão,
que logo permitiu a todos os animais carnívoros que comessem
e vivessem dos animais herbívoros.
Certo dia, estava o rei no parlamento tratando da organização
da corte. Durante todo o dia, até a noitinha, o rei e seus
barões estiveram reunidos, sem nada comer nem beber. Terminada
a sessão, o Leão e seus companheiros estavam famintos.
Perguntou o Leão ao Lobo e à Raposa o que poderiam
comer. Responderam-lhe que era tarde para que pudessem procurar
alimento, mas que havia perto dali uma vitela, filha do Boi, e
um potrinho, filho do Cavalo, de que poderiam se alimentar à vontade.
Enviou-os lá o Leão e fazendo vir a vitela e o potrinho,
todos os comeram. Enfureceu-se o Boi com a morte da filha, o mesmo
ocorrendo com o Cavalo. Juntos foram ter com o homem para se porem
a seu serviço e para que ele os vingasse da ofensa que lhes
fizera seu soberano. Tão logo se apresentaram ao homem para
servi-lo, este montou no Cavalo e levou o Boi a arar.
Aconteceu um dia de o Boi e o Cavalo se encontrarem e um perguntou
ao outro sobre a condição de cada um. Disse o Cavalo
que trabalhava demasiado, servindo a seu senhor, que o cavalgava
o dia inteiro, fazia-o correr para cima e para baixo, e o mantinha
preso dia e noite. Desejava muito livrar-se da servidão
a seu amo e de bom grado voltaria a submeter-se ao Leão.
Mas, sendo este carnívoro, e tendo ele próprio obtido
algum voto na eleição do rei, hesitou voltar à terra
onde reinava o Leão, preferindo trabalhar sob o jugo do
homem, que não comia carne de Cavalo, a pôr-se ao
lado do Leão, comedor de Cavalo.
Terminando o Cavalo de expor sua situação, disse-lhe
o Boi que trabalhava muito o dia todo arando, e que o amo não
o deixava comer do trigo produzido pela terra que ele arava. Quando
terminava e lhe era retirado o arado, só lhe restava servir-se
das ervas que as ovelhas e as cabras tinham pastado. Duramente
reclamava o Boi de seu senhor e o Cavalo o confortava o quanto
estava ao seu alcance.
Enquanto os dois animais assim falavam, aproximou-se um açougueiro
a ver se o Boi estava gordo, pois o seu dono decidira vendê-lo.
O Boi contou então ao Cavalo que o seu amo o queria vender,
fazê-lo matar e ser comido pelos homens. Respondeu-lhe o
Cavalo que o amo lhe recompensava mal os serviços que dele
recebera. Por longo tempo o Cavalo e o Boi choraram; por fim, o
Cavalo aconselhou o Boi a fugir e voltar ao seu país, pois,
era preferível estar sujeito ao trabalho e perigo de morte
do que a um senhor ingrato.
Capitulo II: Do conselho do rei
Eleito rei, o Leão pronunciou belo discurso diante de seu
povo, nestes termos:
- Senhores, é vossa vontade que eu seja rei. Sabeis todos
que o ofício de rei é muito perigoso e mui penoso.
Perigoso porque, devido aos pecados do rei, muitas vezes envia
Deus à terra fome, doenças, guerras e a morte; outro
tanto ele faz devido aos pecados do povo. Assim, reinar é coisa
perigosa para o rei, e de igual modo o é para todo o seu
povo. E porque é mui penoso ao rei tanto governar a si como
ao seu povo, peço a todos vós que me deis conselheiros
capazes de me ajudar e aconselhar, de sorte a serem a salvação
minha e de meu povo. Peço-vos também sejam eles homens
sábios e leais, dignos de se tornarem conselheiros e companheiros
do rei.
As palavras pronunciadas pelo rei agradaram bastante aos barões
e ao povo, considerando-se todos satisfeitos com a eleição
dele. Decidiu-se que o Urso, o Leopardo, a Onça, a Serpente
e o Lobo seriam conselheiros do rei; os escolhidos juraram perante
a corte dar-lhe conselhos leais em tudo que pudessem.
Aborrecidíssima por não ser escolhida como conselheira
do rei, Da. Raposa fez o seguinte discurso diante da corte:
- Pelo que encontramos no Evangelho, Jesus Cristo, rei do céu
e da terra, quis ter a amizade e a companhia dos homens simples
e humildes. Por isso escolheu os Apóstolos, homens simples
e pobres, mostrando assim que lhes louvava a virtude, embora pudessem
ser ainda mais humildes. Para vossa instrução, pois,
digo que, a meu ver, o rei deveria ter em seu Conselho animais
simples e humildes, que não se orgulhassem nem de seu poder
nem de sua linhagem, nem quisessem igualar-se a ele, tornando-se
desse modo exemplo de esperança e humildade aos animais
simples e herbívoros.
Pareceu correto ao Elefante, ao Javali, ao Carneiro, ao Bode e
aos demais animais herbívoros o que dizia Da. Raposa. E
juntos recomendaram ao rei incluir como conselheira Da. Raposa,
que falava bem e tinha grande sabedoria. Esta, por sua vez, aconselhou
como de bom alvitre que o Elefante, o Javali, o Bode e o Carneiro
também fizessem parte do Conselho do Rei.
Preocupação enorme tomou conta do Urso, do Leopardo
e da Onça ao saberem que Da. Raposa faria parte do conselho
real: tinham pavor de que ela, com sua eloqüência e
habilidade, pudesse sujeitá-los à ira do rei, principalmente
porque, mais que todos ou outros animais, aconselhara ela a sua
eleição.
- Senhor, disse o Leopardo ao rei, existe em vossa corte o Galo,
que é uma bela figura e sábio; além de saber
impor-se como senhor de muitas galinhas. Ao alvorecer, solta um
canto claríssimo e belo, o que o torna muito mais indicado
para vosso conselheiro do que Da. Raposa.
O Elefante acrescentou de seu lado que seria salutar fizesse o
Galo parte do conselho do rei, pois haveria de mostrar como governar
e ter a rainha submissa, sem mencionar que, ao alvorecer, o despertaria
para rezar a Deus. Digna também de ser conselheira era Da.
Raposa, animal sábio e conhecedor de muitas coisas.
Finalmente, o Leopardo opinou que não convinha integrassem
o conselho do rei duas pessoas que, por natureza, se queriam mal,
pois sua animosidade acabaria perturbando aquele conselho.
Tomando por sua vez a palavra, disse Da. Raposa que era muito
apropriado houvesse no conselho real animais grandes e vistosos
como o Elefante, o Javali, o Bode, o Carneiro e o Cervo, porque
a bela aparência fica bem na presença do rei.
Decidiu o rei que Da. Raposa e seus companheiros integrassem a
corte e seu conselho. Estaria tudo acabado, não fosse o
Leopardo sair secretamente com estas palavras ao ouvido do rei:
-Senhor, certo conde estava em guerra com um rei, e não
sendo tão poderoso quanto este, valeu-se da sagacidade para
combatê-lo. Assim é que em segredo deu esse conde
bons presentes ao secretário do rei, em troca de saber todas
as estratégias que o rei empregaria contra ele. Com isso,
o secretário tolheu a força do rei, que não
conseguia dar fim à guerra contra o conde.
Terminada a fala do Leopardo e tendo compreendido a alusão,
o Leão disse que o Galo faria parte de sua corte, mas recusou
a participação de Da. Raposa, para que ela não
desse conhecimento das estratégias do rei e de seus companheiros
ao Elefante e aos animais herbívoros.
Capitulo III: Da traição que Da. Raposa armou contra
o rei
Muito se aborreceram Da. Raposa e seus companheiros por não
serem incluídos no conselho real. Desse momento em diante,
concebeu ela em seu ânimo a traição, desejando
a morte do rei. Estas foram suas palavras ao Elefante:
- A partir de agora haverá grande inimizade entre os animais
carnívoros e os herbívoros, pois o rei e seus conselheiros
comem carne e vós não tendes no Conselho nenhum animal
da mesma natureza que a vossa e que defenda os vossos interesses.
A resposta do Elefante foi que esperava da Serpente e do Galo
que defendessem seus direitos na corte do rei, por serem herbívoros.
Retrucou Da. Raposa contando que aconteceu de existir num país
certo cristão que tinha um sarraceno [6]
em quem confiava cegamente e ao qual concedia muitos favores.
Por lhe ser contrário pela crença, o sarraceno não
podia estimá-lo: antes matutava a cada dia como matá-lo.
[7] E acrescentou:
-Assim também, senhor Elefante, de linhagem diferente da
vossa e de vossos companheiros são a Serpente e o Galo que,
embora não comam carne, nem por isso deles podeis fiar-vos,
devendo antes ter por certo que estarão de acordo com tudo
o que seja a vós todos prejudicial.
Preocupadíssimo com as palavras de Da. Raposa, pôs-se
o Elefante a refletir longamente nos males que lhe podiam advir
e a seus companheiros da eleição do rei e seus conselheiros.
Entrementes, falou-lhe Da. Raposa que não tivesse medo deles,
e que se lhe aprouvesse ser rei, ela agiria de modo a que isso
ocorresse. O Elefante, porém, receou que Da. Raposa o traísse,
pois, segundo a natureza, devia ela preferir os animais carnívoros
aos herbívoros. Disse-lhe por isso ele:
-Aconteceu em certo país de um milhafre sair carregando
uma ratazana. Um eremita pediu a Deus fizesse a ratazana cair em
seu colo. Em resposta a suas preces Deus o atendeu e ele lhe rogou
que transformasse a ratazana numa linda donzela. Deus acatou-lhe
novamente as orações e fez da ratazana uma bela jovem.
-Filha, disse o eremita à jovem, queres o sol por marido?
-Não, senhor, pois as nuvens tolhem sua claridade.
Perguntou-lhe o eremita se queria a lua por marido; ela respondeu
que a lua não tinha claridade própria, mas a recebia
do sol.
-Queres então, minha bela filha, as nuvens por marido?
Ela respondeu que não, porque o vento as carregava para
onde queria. Não quis também o vento por marido porque
as montanhas impediam seu movimento; nem quis as montanhas porque
a estas os ratos roíam; nem tampouco ao homem aceitou por
marido porque matava os ratos. Pediu ela afinal ao eremita que
rogasse a Deus a tornasse em rata como era e lhe desse um belo
rato por marido.
Escutando esse exemplo, compreendeu Da. Raposa que o Elefante
suspeitava dela e temeu que a denunciasse. Teria de bom grado dito
ao Javali que fosse rei, da mesma forma que propusera ao Elefante.
Mas, para evitar que muitos soubessem de sua intenção,
quis cuidar a todo preço que o Elefante se tornasse rei.
E assim falou:
-Em certo país um cavaleiro teve um lindo filho de uma
mulher que veio a falecer. O cavaleiro tomou outra mulher que odiava
muito o garoto, por outro lado extremosamente amado do pai. Ao
completar o jovem vinte anos, procurou a mulher um meio de levar
o marido a expulsar o filho de sua casa. Mentiu ao marido, dizendo
que o jovem quisera abusar dela. O cavaleiro, que tanto amava a
mulher, acreditou imediatamente em tudo e expulsou o filho de casa,
ordenando-lhe não mais surgisse a sua frente. Tomou-se de
extrema cólera o jovem contra o pai, que sem razão
o banira e privara de todos os favores. [8]
Serviu o exemplo para consolar em parte ao Elefante, que ficou
na esperança de tornar-se rei, como lhe dizia Da. Raposa.
Perguntou-lhe, no entanto, como haveria ela de fazer para que o
rei morresse e ele viesse a ser rei, sendo o Leão tão
forte e rodeado de tão sábio Conselho, enquanto ela
era animal de pequeno porte e de apoucadíssima força.
Respondeu-lhe Da. Raposa com este exemplo:
-Deu-se num país que todos os animais concordaram em oferecer
diariamente um animal ao leão para que não se desse
ao trabalho de caçar. Com isso ele os deixava em paz. A
cada dia os animais tiravam a sorte e o sorteado entregava-se ao
leão, que o devorava. Um dia a sorte recaiu sobre uma lebre
que, temerosa de morrer, retardou até o meio-dia a hora
de ir ao leão. Tomado de fome excessiva, irritou-se muito
o leão com o enorme atraso da lebre e lhe perguntou por
que demorara tanto. Desculpando-se, disse a lebre que havia perto
dali um leão que se dizia rei daquele país e que
tentara apanhá-la. Furioso, e cuidando fosse verdade o que
ouvia, pediu que ela lhe mostrasse o leão. Saindo à frente
do leão que a seguia, a lebre chegou a uma grande reserva
de água que formava uma bacia rodeada de altos muros por
todos os lados. Aproximando-se da água, as sombras da lebre
e do leão surgiram na superfície. Disse ela então:
-Senhor, eis na água o leão que deseja comer uma
lebre!
Julgando o leão que sua sombra fosse outro leão,
pulou dentro d'água e atracou-se em combate com ele: acabou
morrendo na água, graças à astúcia
da lebre.
Tendo ouvido o exemplo, o Elefante contou, por sua vez, este outro
a Da. Raposa:
-Certo rei tinha dois jovens que cuidavam de sua pessoa. Estando
um dia em seu trono diante de grande número de altos barões
e cavaleiros, um dos jovens sentado na sua frente viu uma pulga
no manto de seda branca que o rei usava. Pediu-lhe o jovem licença
para aproximar-se, a fim de apanhar a pulga. Deu o rei licença
ao jovem de aproximar-se e pegar a pulga. Quis vê-la o rei
e, mostrando-a aos cavaleiros, disse que era de espantar que
um animal tão pequeno ousasse aproximar-se do rei. E mandou
fossem dados cem besantes [9] ao jovem. Invejoso de seu companheiro,
o outro jovem pôs no dia seguinte um grande piolho no manto
do rei, a quem repetiu as mesmas palavras do companheiro. O jovem
mostrou o piolho ao rei que, esquivando-se bruscamente, disse que
ele merecia a morte por não lhe ter protegido as vestes
contra os piolhos; e ordenou que lhe aplicassem cem golpes de açoite.
Compreendeu Da. Raposa que o Elefante tinha medo de tornar-se
rei [10] e, perplexa de que em pessoa tão imensa como ele
pudesse caber tanto medo, disse:
-Conta-se que a Serpente, valendo-se de Eva que não passava
de simples mulher, fez recair a ira de Deus sobre Adão e
todos os seus descendentes. Ora, se a Serpente, com a ajuda de
Eva, armou tamanha maldade, bem se pode esperar que eu, com minha
inteligência e manha, consiga fazer que o rei seja vítima
da ira de seu povo.
No momento em que Da. Raposa lhe contou o exemplo de Eva, o Elefante
decidiu trair o rei e disse a ela que tão logo desse morte
ao rei, de bom grado tomaria o lugar dele. Respondeu-lhe Da. Raposa
que agiria para que o rei morresse. Então o Elefante lhe
prometeu presentes valiosos e grandes honras, se conseguisse fazê-lo
rei.
Capitulo IV: De como Da. Raposa se tornou porteira da câmara
real
Deu-se ordem na corte do rei para que se fizesse camareiro ao
Gato e porteiro ao Cão. O Gato tornou-se camareiro porque
devorava os ratos que destruíam os tecidos e porque se parecia
fisicamente com o rei. O Cão se fez porteiro porque farejava
de longe, latia e advertia o rei daqueles que vinham a ele. Estando
os dois em seus cargos, saiu Da. Raposa em busca do Boi e do Cavalo,
que haviam deixado a corte do rei; pelo caminho encontrou o Boi
que voltava à corte. Da. Raposa e o Boi se reencontraram
numa linda planície e saudaram-se mui amavelmente, contando-lhe
o Boi sua situação, isto é, como fora espontaneamente
ao homem, como este o mantivera por longo tempo em servidão
e, afinal, como quis vendê-lo a um açougueiro que
pretendia matá-lo. Da. Raposa, por sua vez, relatou-lhe
a situação da corte, conforme se expôs acima.
-Senhor Boi, perguntou Da. Raposa, qual é a vossa vontade?
Respondeu o Boi que voltava à corte do rei, fugindo do
homem que pretendera vendê-lo e fazê-lo morrer. Ao
que disse Da. Raposa estas palavras:
-Havia em certo reino um rei de maus costumes e um conselho perverso.
Devido à maldade deles, o reino todo padecia aflição
e a cólera de Deus, porque era incalculável o mal
que o rei e seu conselho causavam ao povo daquele país.
Tanto tempo durou esse mal que o povo não o pôde mais
suportar e desejou a morte do rei e de seu conselho, por causa
de sua vida má e de seus maus exemplos.
Pelo que contou Da. Raposa, compreendeu o Boi que o rei e seu
conselho eram maus e hesitou em viver sob um regime perverso. Disse
o seguinte a Da. Raposa:
-Em certa cidade havia um bispo indigno de seu estado e cuja malícia,
desonestidade e mau exemplo dado a seu capítulo e ao povo
da cidade provocavam muito dano, perdendo-se boa parte do bem que
gozaria aquela cidade, se o bispo tivesse obedecido à regra
e à doutrina que Jesus Cristo deu aos Apóstolos e
seus sucessores. Ora, um dia o bispo praticou grande injúria
e em seguida foi cantar a Missa. Um cônego julgou tão
abominável a falta do bispo que, deixando a cidade, foi
participar da vida dos pastores nos bosques. E dizia que preferia
estar entre os pastores que protegem as ovelhas dos lobos a viver
com o pastor que mata suas ovelhas e as dá ao lobo. Tendo
contado esse exemplo, o Boi confiou a Da. Raposa que sairia de
vez daquele país, pois não queria submeter-se nem
ao rei nem ao seu Conselho, que governavam tão perversamente.
-Senhor Boi - disse Da. Raposa - já ouvistes a pergunta
que um eremita fez a seu rei?
-Que pergunta foi essa? - indagou o Boi.
-Numa elevada montanha - começou Da. Raposa - vivia um
eremita, homem de vida santa, que todos os dias ouvia muitas queixas
a respeito do rei daquele país. O rei era um homem pecador
e de mau governo, e as pessoas reclamavam muito dele ao eremita.
Extremamente descontente com a conduta perversa do rei, o santo
homem decidiu devotar-se a induzi-lo ao bom caminho. Desceu de
sua ermida e veio para a bela cidade onde morava o rei.
-Senhor - perguntou o bom homem ao rei - o que vos parece seja
mais agradável a Deus neste mundo: uma vida de eremita ou
uma vida de rei que rege com justiça o seu povo?
Refletiu longamente o soberano sobre a pergunta, antes de responder;
por fim, disse que a vida de um rei dedicado às boas obras é um
bem maior do que a vida de eremita.
-Senhor - tornou o eremita - muito me alegra vossa resposta, segundo
a qual torna-se evidente que um rei perverso causa mais dano que
todo o bem que qualquer eremita possa praticar em sua ermida. Eis
por que desci de meu retiro e vim a vós propondo permanecer
longo tempo convosco até que vós e vosso reino estejam
no bom caminho. Dir-vos-ei as palavras de Deus que vos levem ao
amor a Deus e a conhecê-lo e temê-lo.
Por muito tempo permaneceu o eremita na corte, pregando as boas
palavras divinas que levaram finalmente o rei ao caminho reto e
todo o seu povo foi bem governado.
Depois de contar esse exemplo, assim falou Da. Raposa ao Boi:
-Senhor Boi, sois um animal que lembra um eremita; se vos agradar,
darei um conselho capaz de induzir o rei, meu e vosso soberano,
ao bom caminho. E do que fizerdes há de resultar uma enormidade
de bem.
Prometeu-lhe o Boi fazer todo o bem ao seu alcance, se com isso
o rei e seu povo voltassem à conduta correta. Então
Da. Raposa aconselhou o Boi que ficasse num prado viçoso,
próximo de onde viviam o rei e seus barões, e aí comesse
e descansasse o suficiente para adquirir uma bela aparência
e poder mugir com vigor.
-Tão logo estejais recuperado e forte, senhor Boi, havereis
de mugir o mais vigorosamente que puderdes, três vezes ao
dia e três vezes à noite. Entrementes, falarei ao
rei a respeito de vossa situação.
O Boi acolheu o conselho de Da. Raposa, que retornou à corte
do rei.
Já bastante repousado e fortalecido, o Boi começou
a mugir fortemente. Ao ouvir seus mugidos, Da. Raposa apresentou-se
ao rei e ficou diante dele enquanto o Boi mugia. Tão apavorado
estava o rei com os mugidos que não conseguia deixar de
tremer, envergonhado à frente dos barões pelo receio
de passar por poltrão. Vendo o pavor do rei e não
percebendo nenhum de seus barões o motivo, Da. Raposa se
aproximou do rei. O Galo cantou e o Cão latiu porque ela
se achegou ao rei. Este se agradou de tê-la perto e perguntou-lhe
se sabia a que animal pertencia aquela voz, pois, pela aparência,
tinha ele a impressão de que se tratava de alguém
enorme e forte.
-Senhor, falou Da. Raposa, um jogral pendurou seu tambor numa árvore
do vale e o vento balançava esse tambor, jogando-o contra
os galhos. As batidas do tambor contra a árvore arrancavam
dele um forte lamento que repercutia por todo o vale. Um macaco
habitante do vale, ouvindo o som, chegou até o tambor; pela
força da voz, ele julgou estivesse o tambor carregado de
manteiga ou de outra coisa boa de se comer. Quebrou-o, achando-o
vazio de todo. De igual modo, senhor (acrescentou ela ao Leão),
podeis pensar que essa voz que escutais é de um animal vazio,
sem a força que a voz aparenta. Sede forte e corajoso, que
não fica bem a um rei apavorar-se, sobretudo com algo que
não sabe o que é.
Enquanto estas coisas dizia Da. Raposa ao rei, o Boi berrava e
urrava fortemente e de tal maneira que a região toda onde
se encontrava o Leão ressoou, fazendo-o estremecer junto
com os companheiros. Não conseguiu o rei esconder os sinais
de pavor, dizendo que se a força daquele animal tivesse
o tamanho de sua voz, ele agia mal em permanecer naquele local.
Mais uma vez mugiu o Boi e mais uma vez estremeceu o Leão
e os de seu conselho. Da. Raposa não manifestou nenhum medo;
pelo contrário, manteve-se alegre à frente do rei
que, assim como os demais animais, se espantou muito de não
vê-la aterrorizada. E o rei disse a Da. Raposa estas palavras:
-Raposa, como se explica que não tenhas medo dessa voz
tão grande e estranha? Bem vês que eu, tão
poderoso, o Urso, o Leopardo e os outros animais, que são
mais fortes do que tu, se apavoram com essa voz.
-Em resposta ao rei, Da. Raposa disse estas palavras:
-Um corvo fazia seu ninho num rochedo e a cada ano uma enorme
serpente comia-lhe os filhotes. O corvo ficava furiosíssimo
com a serpente, mas não ousava atacá-la, por não
ser tão poderoso que a pudesse vencer pela força
das armas. Faltando-lhe, pois, a força, decidiu servir-se
da astúcia contra a serpente. Aconteceu certo dia de a filha
do rei ir brincar com suas amiguinhas num pomar, pendurando seu
diadema de ouro, prata e pedras preciosas no ramo de uma árvore.
O corvo apanhou o diadema e atravessou os céus com ele,
enquanto uma multidão de homens o seguia para ver onde ele
poria o diadema, de que tanto gostava a filha do rei e que chorava
copiosamente ao vê-lo carregado. O corvo largou o diadema
onde se achava a serpente, e vindo os homens apanhá-lo,
viram-na e a mataram. Assim, com a ajuda dos outros e pela esperteza
e malícia, vingou-se o corvo da serpente. [11]
-Quanto a mim, acrescentou Da. Raposa ao Leão, tenho tanta
esperteza e malícia que se não pudesse vencer pela
força das armas o animal que tem essa voz tão poderosa
e terrível, haveria de valer-me da esperteza e malícia,
de tal modo que lhe daria dura morte.
Ao exemplo de Da. Raposa, a Serpente que fazia parte dos conselheiros
do rei, opôs o seguinte:
-Vivia num lago uma garça há muito acostumada a
pescar. A garça começou a envelhecer e devido à velhice
a caça muitas vezes lhe escapava. Procurou ela então
recorrer à esperteza e à astúcia, mas com
isso acabou encontrando a própria morte.
Pedindo-lhe o Leão que contasse a maneira pela qual a garça
se causara a morte, prosseguiu a Serpente:
-Essa garça, senhor rei, passou um dia até o anoitecer
na beira do lago, triste, sem decidir-se a pescar. Espantado com
a garça que não pescava como era seu costume, um
caranguejo perguntou-lhe por que estava tão pensativa. Chorando,
respondeu-lhe ela que tinha grande pena dos peixes daquele lago,
dos quais há tanto tempo vivia e lamentava-lhes profundamente
a infelicidade e morte, pois dois pescadores pescavam noutro lago
e decidiram que, tão logo terminassem, viriam para aquele.
-Esses pescadores, dizia ela, são mestres na arte de pescar
e nenhum peixe escapa deles: apanharão todos os peixes deste
lago.
Ouvindo tais palavras, assustou-se o caranguejo e foi prevenir
os peixes do lago que, reunindo-se vieram à garça
pedir-lhe conselho.
Só existe uma solução: que eu vos leve a
todos, um por um, para um lago distante uma légua daqui.
Nele há muito caniço e abundância de lodo,
o que impedirá os pescadores de fazer-lhes mal.
Tiveram os peixes por boa a solução e assim, todos
os dias, a garça apanhava quantos peixes desejava e, fingindo
leva-los ao lago, pousava numa colina, comia-os, voltando depois
para pegar outros. Nisso ela se ocupou durante longo tempo, vivendo
sem ter o trabalho de pescar. Um dia, pediu o caranguejo que ela
o transportasse para o outro lago. A garça estendeu o pescoço
e o caranguejo agarrou-se a ele com suas duas mãos. Enquanto
a garça voava, tendo preso ao pescoço o caranguejo,
este se espantava de não ver o lago para onde supunha que
a garça o levava. Ao se aproximarem do lugar onde ela costumava
comer os peixes, o caranguejo viu as espinhas dos peixes comidos
por ela e deu-se conta do logro. Então pensou consigo mesmo: "É bom
que escapes desta traidora que te vai comer, enquanto tens tempo".
Então apertou fortemente o pescoço da garça,
partindo-a e fazendo-a tombar morta em terra. Ao voltar para seus
companheiros, o caranguejo contou a traição praticada
pela garça e que acabara levando-a à morte.
-Senhora, disse Da. Raposa, no tempo em que Deus expulsou Adão
do paraíso, amaldiçoou também a Serpente que
aconselhara Eva a comer do fruto que ele proibira a Adão.
Desse tempo em diante tornaram-se as serpentes venenosas e horríveis
de se verem, advindo da Serpente todos os males existentes no mundo.
Foi por isso que um homem sábio fez expulsar do conselho
uma serpente muito estimada do rei.
Ouvindo isso, pediu o Leão que Da. Raposa contasse esse
exemplo.
-Senhor - começou ela - certo rei ouvira falar de um homem
santo que era de grande sabedoria e mandou procurá-lo. Esse
homem santo veio ao rei, que lhe pediu ficasse junto dele, aconselhando-o
a como governar seu reino e repreendendo-o pelos vícios
que porventura visse nele. Ficou o bom do homem ao lado do rei
com a intenção de aconselhá-lo a praticar
boas obras e a afastar-se do mal. Um dia, o rei reuniu o Conselho
para discutir um grande acontecimento que teria lugar no reino.
Ao seu lado achava-se enorme serpente com a qual o rei se aconselhava
mais freqüentemente do que com os outros. Vendo a serpente,
aquele homem santo perguntou ao rei o que significava ser rei neste
mundo. Ele respondeu:
-Pôs-se rei neste mundo para que ele represente a Deus,
isto é, para que pratique a justiça na terra e governe
o povo que Deus lhe deu para governar.
-Senhor, tornou o sábio, qual foi o animal que mais se
opôs a Deus, quando Ele criou o mundo?
Respondeu o rei que fora a serpente.
-Senhor rei, prosseguiu o sábio, segundo a vossa resposta,
deveis matar a serpente. Cometeis grande pecado tendo-a em vossa
corte, porque se representais, enquanto rei, a imagem de Deus,
deveis odiar tudo o que Deus odeia, principalmente aquilo que Ele
mais odeia.
Às palavras do santo homem, o rei matou a serpente, sem
que ela, seja por arte seja por astúcia, pudesse evitá-lo.
Depois que Da. Raposa contou o exemplo, o Boi berrou e urrou tão
vigorosamente que toda a região estremeceu, e o Leão
e todos os demais tiveram grande medo; de tal sorte que Da. Raposa
disse ao rei que se ele quisesse, ela iria ter com o animal de
voz tão estranha e daria um jeito de trazê-lo para
fazer-lhe companhia. Tanto ao Leão quanto aos outros animais
agradou que Da. Raposa fosse ter com o animal que berrava. Ela
então pediu que se conseguisse trazer aquele animal à corte,
ficasse ele seguro e a salvo, e que ninguém lhe causasse
mal algum nem vilania. À frente de seu Conselho, o rei concedeu
a Da. Raposa tudo o que ela pediu.
Da. Raposa veio até a campina onde o Boi descansava e este
muito se agradou de vê-la chegar. Saudaram-se cortesmente
e ela lhe contou tudo o que acontecera desde que o deixara.
-Belo amigo - disse Da. Raposa - ireis pra junto do rei, e tendo
uma postura de humildade, dareis pelos gestos a impressão
de grande sabedoria. Quanto a mim, dir-lhe-ei que vos arrependestes
profundamente durante o tempo em que estivestes afastado de suas
propriedades. Diante de todos havereis de pedir perdão ao
rei de terdes ido viver com o homem e prometereis não mais
submeter-vos a outro soberano. Meu belo amigo, continuou ela, falai
e comportai-vos diante do rei e de sua corte de tal sorte que todos
se agradem de vossas palavras e gestos. Finalmente, narrai ao rei
a situação dos homens, aconselhando-o a tornar-se
amigo do rei deles.
O Boi e Da. Raposa vieram à corte. Vendo-os se aproximarem,
o rei e seus barões reconheceram o Boi e sentiram-se tolos
por haverem tido medo dele. O rei ficou maravilhado de o Boi ter
uma voz tão alta, forte e terrível. Fazendo ao seu
senhor a reverência que se deve a um rei e em resposta à pergunta
que este lhe fez, o Boi contou o que lhe acontecera enquanto estivera
a serviço do homem. Disse-lhe o rei o quanto se espantava
de ver-lhe mudada a voz, ao que o Boi retrucou que berrava por
medo e contrição, pois tinha-se na conta de culpado
por haver deixado longamente o rei e sua corte, em troca de outra
soberania. O temor e a contrição estremeciam-lhe
a coragem, provocando-lhe a mudança da voz - o que era sinal
de medo, terror e pavor, saídos de um coração
onde havia um ânimo temeroso e arrependido. E pediu perdão
ao rei, que lho concedeu diante de toda a corte, enquanto lhe perguntava
sobre a situação do rei dos homens. Em resposta,
falou o Boi que estava certa a Serpente ao dizer que o homem era
o animal pior e mais falso existente neste mundo. Ao que o Leão
lhe pediu que contasse porque a Serpente fizera tal afirmação
contra o homem.
-Senhor, disse o Boi, aconteceu certa feita de um urso, um corvo,
um homem e uma serpente caírem num fosso. Por ali passou
um santo homem, que era eremita, olhou para o fosso e viu os quatro
que dele não podiam sair. Todos eles pediram ao santo homem
que os tirasse dali, prometendo cada um boa recompensa. Assim,
o eremita retirou do fosso o urso, o corvo, a serpente e, quando
foi para tirar o homem, disse-lhe a serpente que não o fizesse,
caso contrário seria mal-recompensado. Não dando
crédito ao seu conselho, o eremita retirou o homem do fosso.
O urso trouxe uma colmeia carregada de favos de mel ao santo homem
que, tendo-se servido deles à vontade, dirigiu-se a uma
cidade onde pretendia pregar. À entrada da cidade, trouxe-lhe
o corvo um diadema precioso, pertencente à filha do rei
e que ele tirara da cabeça dela. O eremita tomou o diadema
com grande satisfação, pois era muito valioso. Um
homem andava percorrendo aquela cidade aos gritos, dizendo que
fosse quem fosse que tivesse aquele diadema, que o devolvesse à filha
do rei e, em troca, ele lhe daria boa recompensa; mas se alguém
o mantivesse escondido e fosse descoberto, haveria de padecer grande
castigo. O bom eremita veio até uma rua onde morava o homem
que ele retirara do fosso e que era ourives. Confiou-lhe secretamente
o diadema e o ourives o levou à corte, acusando o santo
homem, que foi preso, espancado e encarcerado. A serpente, salva
do fosso pelo santo homem, procurou a filha do rei que dormia e
picou-lhe a mão. Ela chorou e gritou vendo sua mão
inchar de forma impressionante. O rei ficou muito nervoso com a
doença da filha, cuja mão inchara com o veneno e
mandou anunciar pela cidade que daria ricos presentes a qualquer
pessoa que lhe curasse a filha. Enquanto o rei dormia, aproximou-se
a serpente e disse-lhe ao ouvido que estava preso nos cárceres
da corte um homem capaz de com suas ervas curar-lhe a filha. Essas
ervas dera-as a serpente ao bom homem, instruindo-o para que as
passasse sobre a mão da filha do rei e pedisse ao rei que
punisse o ourives que tão mal lhe retribuíra o bem
recebido. Tudo se passou segundo as instruções da
serpente: o santo homem foi solto e o rei aplicou a justiça
contra o ourives.
O exemplo contado pelo Boi contra o homem foi de imenso contentamento
de todo o conselho e do Leão que lhe perguntou se, a seu
ver, ele devia ter medo do rei dos homens. Respondeu-lhe o Boi
que era mui perigoso ser inimigo do rei dos homens, porque nenhum
animal é capaz de se defender do homem mau, poderoso e sagaz.
Refletiu demoradamente o Leão sobre o quanto lhe contara
o Boi, dando-se Da. Raposa conta de que ele estava apavorado com
o rei dos homens. Por isso disse-lhe o seguinte:
-Senhor, o homem é o mais orgulhoso dos animais e aquele
onde se encontra mais avareza; assim, se for do agrado vosso e
do vosso conselho, seria bom que se enviassem mensageiros com jóias
para presentear o rei dos homens, manifestando-lhe a boa vontade
de vossa parte com as jóias enviadas. Com isso, o rei dos
homens conceberia amor em seu ânimo para estimar a vós
e a vosso povo.
Ao rei e ao seu conselho pareceu bom o discurso de Da. Raposa.
Mas, opondo-se replicou o Galo:
-Em certo país, a força e a astúcia defrontaram-se
diante do rei. Dizia a força que ela, por natureza, era
superior à astúcia; esta defendia o contrário.
O rei, por sua vez, querendo saber qual das duas era superior à outra,
destinou-as ao combate, e a astúcia venceu a força.
Por isso, senhor rei, prosseguiu o Galo, se ficardes amigo do rei
dos homens e lhe enviardes mensageiros, ele também há de
enviar os seus até vós, e estes saberão, em
vendo a vós e a vossos barões, que sem engenho nem
arte não podereis defender-vos contra o rei dos homens,
que luta com engenho e arte, e com isso domina todos os que se
batem pela força, mas sem engenho nem arte.
Da. Raposa alegou, por sua vez, que Deus fez o que fez pelo poder,
sem artifício nem astúcia; convém, por isso
que, de acordo com a natureza, sejam mais poderosos no combate
todos os que lutam com armas semelhantes às de Deus.
O exemplo de Da. Raposa satisfez bastante ao Leão, que
desejou, a todo custo, enviar presentes e mensageiros ao rei dos
homens. Perguntou quais conselheiros e que jóias lhe aconselhava
enviar ao rei dos homens. Respondeu Da. Raposa que cabia ao Boi
dar conselho, pois ele conhecia os costumes dos homens e do que
eles mais gostavam. Questionado pelo rei a esse respeito, disse
o Boi:
-Senhor rei: é próprio dos reis dos homens, quando
enviam mensageiros, remetê-los de entre os mais nobres do
seu Conselho. Entre os conselheiros mais nobres que tendes, parece-me
que se contam a Onça e o Leopardo. Doutra parte, o Gato
parece-se convosco e o rei muito vos será reconhecido se
o enviardes a ele de presente, juntamente com o Cão, que é caçador,
e aos homens agrada muito o caçar.
Assim disse o Boi e assim fez o Leão: enviou a Onça
e o Leopardo ao rei como mensageiros e o Cão e o Gato como
presentes. Tão logo partiram da corte, o rei fez do Boi
seu camareiro e Da. Raposa passou para o posto antes ocupado pelo
Cão.
Capitulo V: Dos mensageiros que o Leão enviou ao rei dos
homens
O leão instruiu o Leopardo e a Onça sobre como deviam
levar sua mensagem com estas palavras:
-A sabedoria de um senhor traduz-se por mensageiros sábios,
que sejam bons oradores, bons conselheiros e bons conciliadores.
A nobreza de um senhor traduz-se por mensageiros que cumpram com
honradez sua missão, vistam-se bem e tenham uma comitiva
bem-nutrida e equipada. Tanto os mensageiros como a comitiva não
cometerão atos de avareza, luxúria, soberba, ira,
nem de quaisquer outros vícios. Tudo isso e muito mais se
impõe aos mensageiros de um príncipe nobre, a fim
de que sua missão caia no agrado do príncipe e da
corte aos quais são enviados.
Tendo o Leão instruído seus mensageiros quanto à maneira
como deviam falar ao rei dos homens e como deviam comportar-se,
eles deixaram a corte e viajaram longamente, percorrendo muitos
e diferentes países. Tanto andaram até que chegaram
a uma cidade cujo rei possuía enorme parlamento. À entrada
da cidade surpreenderam mulheres desvairadas e de bordel que diante
deles pecavam com homens. Espantados com o que viam, disse o Leopardo
ao seu companheiro:
-Um burguês tinha por mulher uma senhora a quem muito amava.
Ele alugava a uma mulher desregrada uma casa próxima do
lugar onde ele morava. Sua mulher via freqüentemente entrarem
homens desregrados na casa da mulher desregrada e tomou-se de vontade
de entregar-se à luxúria, permanecendo por muito
tempo nesse pecado. Um dia seu marido a surpreendeu pecando com
um homem. Furiosíssimo o burguês com a queda de sua
mulher, escutou dela estas palavras:
-Certa vez brigavam num prado dois bois selvagens, e em decorrência
dos duros golpes trocados, perdiam sangue da fronte, que se derramava
pela relva graciosa do solo onde se batiam. Uma raposa lambia esse
sangue. Sucedeu que num dos embates os bois tiveram entre si a
raposa e a feriram nos flancos. Foi violento demais o golpe recebido
e ela morreu. Mas antes teve tempo de reconhecer que era culpada
da própria morte.
-Senhor Leopardo, disse o Cão, é espantoso como
os homens que acreditam em Deus não se dão conta
de que permitem a estas mulheres desregradas pecar na presença
das pessoas que entram e saem da cidade. Ao que parece, o senhor
desta cidade e seus habitantes são também luxuriosos,
usando despudoradamente da luxúria como o fazem os cães.
Enquanto dizia o Cão tais palavras, entraram na cidade
e chegaram a um albergue. Em seguida, o Cão e o Leopardo,
com as jóias que traziam, foram procurar o rei dos homens.
Muitos dias permaneceram os mensageiros naquela cidade, antes
que pudessem falar com o rei que, por causa de sua nobreza, tinha-se
em alta conta e não se deixava ver senão raramente.
Aconteceu um dia de os mensageiros ficarem esse dia todo à porta
do rei, sem lhe poderem falar; isso os deixou assaz descontentes
dele e se agastaram de estar em sua corte. Um homem ofendido, que
lá estava também há muito tempo sem conseguir
falar com o rei, disse na presença dos mensageiros estas
palavras:
-Deus, que é rei do céu e da terra e de tudo o que
existe, é humilde. Todas as vezes que um homem quer vê-lo
ou falar-lhe, esse homem pode avistá-lo e contar-lhe suas
necessidades. É um rei sem porteiros que se possam subornar
com dinheiro, nem conselheiros que cometam malvadezas e engodos
por propina. Não dá crédito a nenhum homem
adulador; não nomeia meirinhos, juízes, alcaides
ou procuradores que sejam orgulhosos, vaidosos, avaros, luxuriosos,
injustos. Bendito seja um rei como este e benditos sejam os que
o amam, o conhecem, o honram e o servem!
Diante das palavras desse homem, compreenderam os mensageiros
que o rei era um homem injusto, e a Onça disse ao Leopardo:
-Certo rei desejava dar sua filha por esposa a outro rei. Enviou
secretamente um cavaleiro ao país desse rei, a fim de informar-se
sobre suas condições. O cavaleiro interrogou os camponeses
e o povo quanto ao comportamento do rei e todos lhe falaram mal
dele. Um dia o cavaleiro encontrou dois jograis voltando da corte
do rei, que lhes dera dinheiro e roupas. Perguntados pelo cavaleiro
a respeito dos costumes do rei, reponderam-lhe que ele era generoso,
caçador e amante de mulheres; e muitos outros elogios ainda
fizeram do rei. Somando tais louvores e as censuras do povo, concluiu
o cavaleiro que o rei era pessoa má e de costumes vis. E
voltando ao seu senhor, contou-lhe o que ouvira sobre o rei: desistiu
então o soberano de entregar a filha a um rei de má conduta,
que a isso não lhe permitia a consciência.
Conseguiram afinal os mensageiros chegar à presença
do rei e deram-lhe os presentes enviados pelo Leão, juntamente
com uma carta da parte deste, onde se lia:
-Numa província serviam ao rei inúmeros e honrados
barões, todos homens mui poderosos. Para intimidá-los
e assim manter a paz e a justiça em seu reino, procurou
o rei ficar muito amigo do imperador. Esse imperador estimava-o
bastante pela satisfação que lhe causava e por seus
bons costumes. Em vista disso, não ousavam os barões
desobedecer a nada que lhes ordenasse o rei e submetiam-se a ele:
desse modo a paz reinava no país.
Mal ouvira o recado que o Leão lhe transmitiu e tendo aceito
seus presentes, deu o Gato a um trapeiro que estava por perto e
o Cão a um cavaleiro que gostava de caçar. Grande
foi o descontentamento dos mensageiros ao verem o Gato ser dado
ao trapeiro, homem sem honra, quando o Leão o enviara justamente
por lhe ser parecido. Depois de conversarem por bom tempo com o
rei a respeito do que os trouxera ali, os mensageiros voltaram
para o albergue onde foi ter com eles o Cão, dizendo-lhes
estar descontentíssimo de ter sido dado pelo rei ao cavaleiro
que o obrigava a praticar a caça contra o povo miúdo
do Leão. E não lhe parecia certo agir contra o senhor
a quem pertencera.
Certo dia, o rei dos homens reuniu imensa assembléia e
convidou os mensageiros. Numa sala esplêndida comiam o rei
e a rainha, juntamente com inúmeros cavaleiros e suas senhoras;
diante deles comiam os mensageiros. Durante a refeição,
os jograis circulavam pela sala cantando, tocando e recitando canções
grosseiras e contrárias aos bons costumes. Louvavam o que
devia ser censurado e reprovavam o que devia ser louvado. E o rei
e a rainha e todos os demais riam-se e divertiam-se com a atitude
dos jograis.
Em meio a essa diversão toda, eis que surge na sala um
homem pobremente vestido e de barba longa, que na presença
de todos se põe a dizer:
-Não se esqueçam os aqui presentes: rei, rainha,
seus barões e todos os demais grandes ou pequenos que nesta
sala comem, que Deus criou todos os alimentos que se encontram
nestas mesas. E criou-os diferentes e agradáveis ao paladar,
fazendo-os vir de terras distantes, a fim de ficarem a serviço
do homem e este ao de Deus. Não creiam nem o rei nem a rainha
que Deus se esquece da desonestidade e do desregramento que ocorrem
nesta sala, onde ele está sendo desonrado: pois aqui ninguém
recrimina o que deve ser recriminado, nem louva o que deve ser
louvado, nem dá graças a Deus pela honra que neste
mundo concedeu ao rei, à rainha e a todos os outros.
Mal terminara o bom homem sua fala, um escudeiro sábio
ajoelhou-se diante do rei, pedindo lhe desse um emprego na corte,
a fim de louvar o que merecia louvor e censurar o que merecia censura.
O rei não acolheu o desejo do escudeiro, receoso de que
ele lhe censurasse as faltas que se acostumara a cometer e nas
quais se deleitava. Queria permanecer assim até o fim de
seus dias, quando então se propunha fazer penitência
dos seus pecados.
No impasse de o escudeiro solicitar emprego e o rei recusar-lhe,
o meirinho da cidade veio até o rei e apresentou-lhe um
homem que matara muito injustamente um cavaleiro. O rei imediatamente
o mandou à forca, mas ele lhe dirigiu estas palavras:
-Senhor rei, é próprio de Deus perdoar quando o
homem lhe pede clemência. A vós que estais no lugar
de Deus na terra, peço-vos perdão, e para que Deus
também vos perdoe, deveis perdoar-me.
Esta foi a resposta do rei:
-Deus é justo e misericordioso. Faz justiça se perdoa
a quem não comete falta de propósito, ou quando erra
por acidente ou por aventura, e arrependido pede perdão
- então a misericórdia de Deus o perdoa. Mas a justiça
de Deus não estaria em harmonia com a misericórdia,
se a misericórdia divina perdoasse o homem que peca conscientemente,
confiado na esperança de pedir depois perdão. Como
tu te propuseste matar o cavaleiro e puseste depois em mim a esperança
de que te perdoasse, por isso não és digno de meu
perdão.
Entenderam os mensageiros pelas palavras do rei que ele se manifestava
contra o que dissera o escudeiro e que não queria dar-lhe
o emprego solicitado.
Tendo o rei e os demais comido, saíram da sala e os mensageiros
voltaram ao seu albergue. E conversando diziam-se como era grande
a nobreza da corte, e como o rei seria poderoso em vassalos e riquezas,
se fosse um homem sábio e temente a Deus. À chegada
dos dois ao albergue, encontraram o hospedeiro que chorava copiosamente,
manifestando grande dor.
-Senhor hospedeiro, perguntaram-lhe, por que chorais? O que tendes?
-Senhores mensageiros, respondeu ele, o rei convocou nesta cidade
uma enorme assembléia, reunindo gente oriunda de terras
longínquas. São imensas as despesas feitas pelo rei,
o que o levou a arrecadar impostos pesados nesta cidade. A mim
custarão mil soldos, que terei de tomar emprestados dos
judeus.
-Mas senhor hospedeiro, disseram os mensageiros, o rei não
tem um tesouro?
O hospedeiro respondeu que não e que tomava empréstimo
aos vassalos. Fazia coletas sempre que convocava uma assembléia,
o que acontecia duas vezes ao ano. Desse modo arruinava o povo,
pois nas assembléias se faziam despesas enormes, e levava
todo o reino à pobreza.
-Belo amigo, perguntou a Onça, para que servem as assembléias
que o rei convoca todos os anos?
O hospedeiro respondeu que para nada; ao contrário, resultavam
em grande prejuízo, pois as pessoas se empobreciam, e uma
vez pobres, praticavam muitos delitos e fraude e o rei passava
a odiar seu povo; e tanto dava e dispensava o rei às assembléias
que não lhe bastava sua renda, obrigando-o a tirar de uns
para dar aos outros. E quando se esperava que o rei diria coisas
novas e trataria de algum fato importante, ele nada dizia. Então,
inteiramente decepcionados, deixavam-no com caçoadas e desprezo.
Ouvindo tais palavras a respeito do rei e dos homens desse país,
os mensageiros desprezaram-nos e o Leopardo disse ao hospedeiro:
-Que grande tristeza para este reino é não ter um
senhor de bons costumes que traga paz e justiça.
-Senhor, tornou o hospedeiro, ninguém é capaz de
calcular o mal provocado por um príncipe ruim: seja pelo
mal que faz, seja pelo bem que poderia fazer e não faz.
E assim, de um príncipe ruim provém o mal de duas
maneiras. Este rei a quem fostes enviados confia demasiado na sua
opinião e tem um Conselho que é perverso, mau e composto
de homens vis: cada um tem a pretensão de ser mais rei que
o próprio rei e juntos lhe consomem o reino. O rei não
dá atenção a isso, preocupando-se apenas em
caçar, praticar esportes, entregar-se à luxúria
e vangloriar-se.
Depois de o rei ter dormido, vieram os mensageiros ao seu palácio,
mas não puderam entrar e falar com o rei senão depois
de subornar os porteiros. Conduzidos à presença do
soberano, este deu maior honra ao Leopardo do que à Onça,
dirigindo-lhe um olhar mais afável, e fazendo-o sentar-se
mais perto de si. A Onça, tomada de inveja, irritou-se contra
o rei, pois lhe parecia que este a devia honrar tanto ou mais do
que ao Leopardo. Enquanto atendia aos mensageiros, oito pró-homens,
enviados por quatro cidades, vieram a ele e se queixaram dos oficiais
reais de suas cidades, homens malvados e pecadores que devastavam
o país. Esses oito pró-homens pediam ao rei, em nome
de todas as cidades, que lhes desse bons oficiais. O rei remeteu-os
ao seu Conselho, dizendo-lhes que este atenderia suas reivindicações.
Lá chegados, e exposta a razão de suas presenças,
foram duramente repreendidos pelo Conselho, porque deste faziam
parte amigos dos oficiais das quatro cidades, e era com endosso
deles que os oficiais praticavam o mal e com eles repartiam o dinheiro
ganho desonestamente. E sem nada conseguirem do rei os oito pró-homens
retornaram a suas terras.
Disse então o Leopardo:
-Senhor rei, que desejais dizer ao meu soberano?
O rei dos homens respondeu-lhe que saudasse o rei e pedisse, de
sua parte, que lhe enviasse um urso robusto e um lobo, pois ele
tinha um javali fortíssimo que lhe agradaria pôr em
combate com o urso mais forte que encontrasse. Tinha também
um cachorro caçador que gostaria de fazer enfrentar o pior
lobo que existisse na corte do Leão. Os dois mensageiros
despediram-se do rei e partiram descontentes de sua corte, pois,
ali os retivera por longo tempo sem nada lhes dar nem presente
algum enviar a seu soberano. Pelo contrário: pareceu-lhes
que o rei dos homens pretendia subjugar o Leão, soberano
deles.
No caminho de volta a sua pátria, os mensageiros se encontraram
com os oito pró-homens que também voltavam irritadíssimos
e decepcionados com o rei e seu Conselho. Durante todo o tempo
em que juntos caminharam, falaram do que disseram o rei e o seu
Conselho e de seu comportamento, não poupando uns e outros
palavras de crítica a todos eles. Por fim o Leopardo perguntou
aos pró-homens:
-Senhores, parece-vos que o rei seja culpado do prejuízo
que resulta do seu mau governo?
Um deles deu estas palavras como resposta:
-Havia em certa cidade um burguês nobre e riquíssimo
que, ao morrer, deixou tudo o que tinha ao filho. Muitas pessoas
vieram ter com esse filho: uns queriam arranjar-lhe esposa; outros
recomendavam-lhe entrar em uma ordem religiosa. O jovem acabou
decidindo vender o quanto possuía e construir um albergue
e uma ponte. O albergue seria para acolher os peregrinos que passavam
pela cidade, vindos de além-mar; a ponte seria para os peregrinos
passarem por ela e não se afogarem na água, pois à entrada
da cidade havia um rio e muitos peregrinos que iam ou vinham de
Jerusalém nele se afogavam.
Tendo o filho do burguês construído o albergue e
a ponte, sonhou certa noite que ganharia méritos diante
de Deus pelo bem que faria com aquelas realizações.
Ouvindo tais palavras, compreendeu o Leopardo que o rei dos homens
haveria de padecer no inferno, de tão grandes que eram os
prejuízos para sempre causados pelos maus costumes que seu
Conselho instaurava no país. E disse que a pena reservada
ao rei e ao seu Conselho era incalculável. Acrescentou ainda
a si mesmo que preferia ser um animal irracional - embora nada
restasse de si depois de morto - a ser um rei dos homens, em quem
houvesse tanta culpa quanto era o mal resultante da maldade do
rei.
Os mensageiros e os pró-homens despediram-se e partiram
agradavelmente, levando a recomendação do Leopardo
para que confiassem em Deus, que em breve haveria de dar um soberano
bom, com bom Conselho e bons oficiais: não desesperassem
de Deus, que não permitiriam que um príncipe perverso
vivesse longamente _ e muito vivendo, muito mal causasse.
Logo depois que o Leão enviou seus mensageiros com presentes
ao rei dos homens, Da. Raposa, porteira do rei, disse-lhe que o
Leopardo tinha por esposa a mais bela fêmea do mundo. E tantos
louvores teceu de Da. Leoparda ao rei que este se enamorou dela
e a tomou por mulher, a despeito da rainha e de todo o seu Conselho.
Grande temor o Conselho passou a ter de Da. Raposa, ao vê-la
induzir o rei a cometer falta tão grande contra sua esposa
e contra o Leopardo, que lhe era leal servidor.
-Meu belo amigo, [12] disse
o Boi a Da. Raposa, receio muitíssimo
que o Leopardo vos mate, ao saber que induzistes o rei a forçar
a sua mulher. Tornou-lhe ela em resposta:
-Certa vez uma donzela cometeu uma traição contra
a rainha a quem servia. Todavia, essa donzela privava dos favores
do rei, o que fazia a rainha temê-la. Assim, por recear o
rei, a rainha não se vingava da donzela.
Voltaram os mensageiros e prestaram conta de sua missão.
O Leopardo dirigiu-se ao seu abrigo, onde esperava encontrar sua
mulher, a quem muito amava. A Doninha e todos os outros que faziam
parte de seu abrigo, abatidos de grande tristeza à vista
de seu senhor, contaram ao Leopardo a desonra que lhe fizera o
Leão, em submetendo à força sua esposa. Profundamente
irado contra o rei, perguntou o Leopardo à Doninha se sua
mulher, ao tomá-la o rei a seu serviço, fora irada
ou de boa mente.
-Senhor, disse a Doninha, a Leoparda estava iradíssima
com a imposição do rei e chorou copiosamente, lamentando
separar-se de vós, a quem amava acima de todas as coisas.
Cresceu ainda mais a fúria do Leopardo, ao saber que sua
esposa fora posta à força a serviço do rei;
se ela tivesse ido de boa mente, ele não teria sofrido tanto.
Nesse estado de ira, pôs-se o Leopardo a cogitar como se
vingaria do Leão, que tamanha traição lhe
fizera.
Capitulo VI: Do combate do Leopardo a da Onça
O Leopardo veio para a corte do rei; vendo-o, disse Da. Raposa
secretamente ao rei estas palavras:
-Senhor, por causa de vossa união com a Leoparda, caí na
ira do Leopardo. Se vós não me honrardes na frente
dele e não vos agradardes de ter-me mais perto de vós
que nenhum outro, receio que o Leopardo me matará.
Daí em diante o Leão colocou Da. Raposa em seu Conselho,
mantendo-a perto de si; com isso o Leopardo não ousava agredi-la
nem matá-la. Por conselho dela, o Leão nomeou porteiro
ao Pavão, que tem bom olfato. O Conselho e os demais barões
presentes aborreceram-se da honra que o rei prestava a Da. Raposa.
Particularmente contrariado ficou o Leopardo, quando lhe contaram
que fora ela a causa da união do rei com sua esposa.
O Leopardo veio à presença do rei e de muitos honrados
barões, em cuja presença acusou o rei de traição
por lhe haver traidoramente tomado a mulher; e que se houvesse
na corte algum barão que desejasse lavar o rei dessa traição,
ele o enfrentaria e o levaria a proclamar a traição
do rei. E para armar o desafio, lançou sua prenda ao rei.
Enfureceu-se o Leão com o Leopardo que, à frente
de todo o povo, o acusara de traição, envergonhando-o
imensamente. Disse o rei a seus barões:
-Quem de vós quer lutar contra o Leopardo que me acusa
de traição? - Todos os barões se calaram até que
Da. Raposa disse estas palavras:
-Traição é coisa que muito aborrece a Deus,
e grande desonra traz a todo o povo ver seu soberano acusado de
traidor. Assim como o Leopardo causa grande desonra a seu senhor
e com isso se põe em perigo de morte, da mesma forma faz
grande honra a seu rei todo o barão que o queira limpar
de traição e que, para fazê-lo se lance em
combate, recebendo depois grande recompensa.
Pela grande desonra que o rei padecia ao ser acusado de traição
pelo Leopardo, e porque a Onça irritara-se contra este que
fora mais honrado do que ela pelo rei dos homens - a Onça
decidiu combatê-lo e limpar o rei da traição.
Todavia, doía-lhe a consciência, pois sabia que o
rei perpetrara perfídia e engano contra o Leopardo, que
lealmente o servira durante toda a vida.
Para o campo de batalha foram o Leopardo e a Onça, clamando
o povo:
-Agora aparecerá o vencedor, a verdade ou a mentira!
O Galo perguntou à Serpente quem lhe parecia que havia
de vencer o combate; ao que ela respondeu:
-Decidiu-se o combate para que a verdade confunda e destrua a
falsidade. Deus é a verdade. Todo aquele que sustenta a
falsidade luta contra Deus e contra a verdade.
Estas palavras, ditas sigilosamente ao Galo pela Serpente, chegaram
ao Leopardo e à Onça; grande consolo delas tirou
o Leopardo; já a Onça, abatida de escrúpulos
e tristeza, teve medo de que os pecados do rei se tornassem causa
de sua desonra e morte. [13]
O combate arrastou-se por todo aquele dia, até a hora das
completas. [14] A Onça defendia-se furiosamente do Leopardo,
a quem teria vencido e morto, se não a atormentassem os
remorsos. Quanto ao Leopardo, sustentavam-no a verdade e o ódio
contra o rei, animando-o quando pensava desfalecer; tão
forte sentia-se, confiado de sua boa razão, [15] que dava
mostras de que nada poderia vencê-lo. Por fim, venceu ele
a Onça, obrigando-a a dizer diante de toda a corte que o
rei, seu senhor, era falso e traidor. O combate deixou o rei extremamente
confuso e envergonhado. O Leopardo matou a Onça, e todo
o povo se envergonhou com a desonra de seu senhor.
Tamanha foi a vergonha e o embaraço do Leão à frente
de seu povo e tomou-se de tanto ódio contra o Leopardo que
a tal ponto o desonrara, que se não pôde conter e
diante de todos matou o Leopardo, já exausto e incapaz de
defender-se. Sentiram-se todos os presentes enganados com o crime
cometido pelo rei, e cada um passou a desejar submeter-se a outro
soberano, pois é coisa muitíssimo perigosa a um povo
sujeitar-se a um rei injusto, colérico e traidor.
O rei passou toda a noite em grande ira e aflição.
Na manhã seguinte, reuniu seu Conselho e pediu que o instruíssem
sobre o que o rei dos homens lhe mandara pedir, isto é,
que lhe fossem enviados um urso e um lobo.
-Senhor, disse a Serpente, que era o mais sábio de seus
conselheiros, há em vossas terras muitos ursos e muitos
lobos. Dentre eles podeis escolher à vontade aqueles que
quiserdes enviar.
Da. Raposa, por sua vez, disse que o rei dos homens é o
mais nobre e poderoso de quantos soberanos existem neste mundo.
E acrescentou:
-Por isso é mister, senhor, que lhe envieis o lobo e o
urso mais sábios e fortes que tenhais, pois do contrário
havereis de correr o risco da censura e da ameaça.
Perguntou-lhe o rei quais eram o urso e o lobo mais fortes e sábios
de seu reino; ao que respondeu Da. Raposa dizendo que com certeza
o Urso e o Lobo de seu Conselho eram os mais sábios e fortes
de todo o reino.
Achou bom o rei que se enviassem o Urso e o Lobo de seu Conselho.
Nem um nem outro quiseram esquivar-se, porque amavam a honra e
temiam, em se esquivando, fossem tachados de covardes. Acrescentou
Da. Raposa ao rei que, da mesma forma que estava enviando ao rei
dos homens as criaturas mais nobres de todo o reino, assim também
convinha enviar o mais sábio mensageiro da corte para acompanhar
o presente do Urso e do Lobo. Anuiu o rei e confiou à Serpente
essa missão.
Antes de deixar a corte como mensageira, a Serpente disse o seguinte:
-Certa vez uma raposa encontrou em meio à bela campina
um monte de vísceras em que havia um anzol deixado por um
pescador, a fim de apanhá-la, caso comesse as vísceras.
Vendo-as, não as quis tocar a raposa, dizendo:
-Estas vísceras não estão aqui neste prado
sem alguma intenção de provocar sofrimento e perigo.
O Leão depois que pecou e matou o Leopardo não teve
mais tanta lucidez e argúcia como antes, [16] e não
alcançou o sentido das palavras pronunciadas pela Serpente.
Por isso pediu a ela que lhas explicasse. Respondeu a Serpente
que desde que o Boi e Da. Raposa vieram para a sua corte, esta
não ficou mais sem sofrimentos e tribulações.
Desse modo, a honra que o Leão fizera ao Boi e a Da. Raposa
tinha o preço do sofrimento e tribulações
do rei e de sua corte.
Ouvindo o Boi que a Serpente o acusara perante o rei, defendeu-se
diante dele e da corte. Disse que de modo algum fora malévolo
em relação ao rei, nem lhe parecia que devesse agir
contra ele ou sua corte, pois o rei o honrava; e sendo presa de
bom paladar ao rei, e este não o querendo comer, cabia-lhe
guardar e preservar toda a honra do rei. E desculpando-se por todos
os meios, disse o Boi que Da. Raposa o aconselhara a berrar três
vezes à noite e três vezes ao dia, vindo depois à corte
para tratar com o rei em seu proveito.
A tal ponto se desculpou o Boi junto ao rei que desagradou a Da.
Raposa, levando-a a conceber rancor contra ele no coração.
Veio então um dia de muita neve e intenso frio, deixando
o Leão e os de sua corte sem comida e famintos. Perguntada
sobre o que poderiam comer, Da. Raposa respondeu que não
sabia, mas que ia ver com o Pavão se ele sentia a presença
nas proximidades de algum animal que o rei e seus companheiros
pudessem comer. O Pavão, que tinha muito medo de Da. Raposa,
assustou-se de vê-la aproximar-se. Disse-lhe ela que se o
Leão lhe perguntasse se ele percebia algum animal bom de
ser comido pelo rei, respondesse que não, mas que sentia
cheirar mal o bafo do Boi, sintoma certo de que ele morreria em
breve de doença. Por temor de Da. Raposa e porque o Boi
comia o trigo que lhe servia de alimento, consentiu o Pavão
na morte do Boi, dizendo ao Leão o que Da. Raposa recomendara.
Assim, perguntando o Leão o que ele poderia comer, respondeu-lhe
o Pavão que não sabia, mas que sentia haveria o Boi
de morrer brevemente, pelo que podia perceber de seu bafo corrompido.
Deu ao Leão vontade de comer o Boi, mas pesou-lhe a consciência
de matá-lo, pois, confiando nele, o Boi lhe prometera lealdade
e há muito tempo o servia. Vendo que o rei hesitava em comer
o Boi, Da. Raposa aproximou-se, perguntando-lhe por que não
o comia, já que o Boi em breve morreria de doença,
como bem o sabia o Pavão, e principalmente sendo vontade
de Deus que o rei satisfizesse suas necessidades, recorrendo a
seus súditos, quando não houvesse outra maneira.
A resposta do Leão a Da. Raposa foi que por coisa nenhuma
trairia a palavra prometida ao Boi.
-Senhor, tornou Da. Raposa, comereis o Boi se eu o fizer dizer
que vós o comais e se ele vos desobrigar da palavra dada?
O Leão disse que sim.
Da. Raposa foi ter então com um Corvo, que estava faminto,
e disse-lhe o seguinte:
-O Leão tem fome e eu darei um jeito para que ele mate
o Boi que, sendo animal gordo e imenso, bastará a todos.
Se o Leão disser diante de ti que está com fome,
tu te ofereces a ele, dizendo-lhe que te coma. Mas ele não
te comerá, pois eu te escusarei junto dele e ele ouvirá meu
conselho, pois tudo o que lhe digo faz; e em me oferecendo eu ao
rei para que me coma, digas que não sou boa para ser comida
e que minha carne não é saudável.
Tendo assim instruído o Corvo, foi Da. Raposa ao Boi e
disse-lhe que o rei desejava comê-lo, levado pela palavra
do Pavão que achava do bafo do Boi que este em breve morreria
de doença. Assustadíssimo, aludiu o Boi que era legítima
a réplica do camponês ao cavaleiro. Perguntando-lhe
Da. Raposa como é que isso se dera, contou o Boi:
-Desejoso de honras, um camponês rico deu sua filha por
esposa a um cavaleiro que lhe cobiçava a riqueza. As honras
tornaram-se riqueza, mas a riqueza não teve força
para tornar honrado o camponês. Quanto ao cavaleiro, suas
honras conseguiram-lhe a riqueza do camponês, de tal sorte
que este ficou pobre e sem honras, e o cavaleiro rico e honrado.
Disse então o camponês ao cavaleiro que a intimidade
entre camponês e cavaleiro resulta em pobreza e tribulações
para o primeiro e em honras para o segundo. E concluiu:
-Daí por que da intimidade do boi com o leão resulta
a morte do boi e a satisfação do leão.
Da. Raposa, dizendo ao Boi que o Leão lhe prometera fidelidade
e nada de traição, aconselhou-o a oferecer-se ao
Leão para comê-lo, se fosse necessário. O Leão
haveria de ficar-lhe mui agradecido e em reconhecimento de sua
generosidade e pela dívida de gratidão contraída,
não lhe faria mal nenhum.
-E não se esqueça, rematou ela, que o ajudarei de
tal maneira que o Leão não possa causar-lhe nem vileza
nem injustiça.
Feitas todas estas recomendações, Da. Raposa mais
o Boi e o Corvo se apresentaram ao Leão. Aproximando-se
deste, o Corvo disse que sabia de sua fome e pediu-lhe que o comesse.
Da. Raposa interferiu em favor dele, dizendo que sua carne não
era comida adequada a um rei. E dito isso, ofereceu-se ao rei para
que a comesse, pois nada mais tinha a dar-lhe além de si
própria. O Corvo se apressou em dizer que a carne de Da.
Raposa não prestava como comida. Então o Boi, usando
palavras semelhantes, ofereceu-se ao Leão, dizendo-lhe que
o comesse, porque ele era grande e gordo e sua carne, boa de ser
comida. Assim o Leão matou o Boi e dele comeram à vontade
o rei, Da. Raposa e o Corvo.
Morto o Boi, o Leão perguntou ao Galo e a Da. Raposa quem
seria seu camareiro. O Galo quis falar primeiro, mas Da. Raposa
lançou-lhe um olhar tão irado que ele hesitou responder
antes dela. Voltando-se para o rei, disse-lhe Da. Raposa que o
Coelho tinha um semblante gracioso, e sendo animal humilde, ficaria
bem nas funções exercidas antes pelo Gato e pelo
Boi. O Leão pediu a opinião do Galo que, não
ousando contrariar Da. Raposa, a quem muito temia, aconselhou-o
a seguir a opinião dela. O Leão nomeou o Coelho camareiro
e Da. Raposa passou a ter enorme poder na corte, pois o Galo, o
Pavão e o Coelho a temiam; o Leão, por sua vez, dava
crédito a tudo o que ela lhe dizia.
Um dia o Leão precisou resolver um caso complicado ocorrido
no reino e buscou o conselho do Galo e de Da. Raposa. O Galo respondeu
que não se sentia à altura de aconselhar o rei em
caso de tamanha monta sem o auxílio dos companheiros. E
recomendou ao rei que ampliasse o Conselho, pois não condizia
com sua honra de soberano ter o Conselho diminuído, coisa
que acontecera depois da partida da Serpente, do Leopardo, da Onça
e do Lobo. O rei houve por bem designar conselheiros, e assim teria
feito se Da. Raposa não dissesse o seguinte:
-Vivia num país certo homem a quem Deus facultara tanto
conhecimento que entendia tudo o que diziam os animais e os pássaros.
Dera-lhe Deus esse conhecimento com uma condição,
a saber: que nada do que ouvisse e entendesse dito pelos animais
ou pássaros contasse a ninguém, pois no dia em que
o fizesse, morreria. Esse homem tinha um pomar onde um boi puxava água
de uma nora e um burro carregava o esterco para adubar o pomar.
Num fim de dia em que o boi estava extenuado, o burro aconselhou-o
a não comer a cevada, a fim de que na manhã seguinte
o homem não o levasse a tirar água e assim descansaria.
Acatando o conselho do burro, nessa noite o boi não comeu
cevada. Supondo que o boi estivesse doente, o hortelão levou
o burro em seu lugar para puxar a água. E assim o fez o
burro, a duras penas, durante todo o dia. Ao anoitecer, retornou
ao estábulo onde encontrou o boi, descansando deitado. Chorando
diante dele, disse-lhe o burro:
- O dono, julgando que estás doente, quer vender-te a um
açougueiro; por isso, antes que te mande matar, é bom
que voltes ao teu trabalho e percas esse aspecto doente.
Disse o burro essas palavras ao boi, a fim de que o hortelão
não o levasse mais a puxar água, que lhe era bem
mais penoso que transportar o esterco. Com medo de morrer, apressou-se
o boi em comer cevada naquela noite, demonstrando estar curado.
O dono do boi e do burro entendeu a conversa dos dois e pôs-se
a rir diante da mulher, que quis saber do marido por que ria; ele,
porém, não lhe quis contar. Disse então a
mulher que ela não comeria nem beberia, deixando-se morrer,
caso ele não lho revelasse. Durante um dia e uma noite jejuou
a malvada da mulher, que não queria nem comer nem beber.
O marido que a amava muito, decidiu enfim contar-lhe e fez seu
testamento; depois disso, preparou-se para contar à mulher
porque ele tinha rido. Mas ele ouviu o que o cão disse ao
galo, e a resposta deste ao cão.
-Como foi isso? - indagou o Leão a Da. Raposa.
Da. Raposa contou ao Leão que enquanto o homem fazia seu
testamento, o galo cantou, sendo repreendido pelo cão por
estar cantando quando seu patrão iria morrer. Espantadíssimo
o galo de ser repreendido por cantar, escutou do cão como
seu dono iria morrer de boa mente para que sua mulher vivesse.
Retrucou o galo que bom era ele morresse, pois não passava
de um pobre coitado que sequer sabia ser o senhor de uma mulher.
E tendo assim falado, chamou suas dez galinhas, reunindo-as todas
num canto e fazendo delas o que queria. Isso fez para que o cão
entendesse que se devia consolar da morte de seu amo. Os dois se
consolaram da morte do amo: o galo cantou e o cão se alegrou.
-Companheiro, disse o cão ao galo, se tivesses uma mulher
tão leviana como a de meu amo, que lhe farias, se acaso
te pusesse à porta da morte, como aconteceu a meu amo?
Respondeu o galo que se estivesse no lugar do amo, cortaria cinco
galhos de uma romanzeira do pomar e daria uma surra tão
forte na mulher, até que todos os galhos se quebrassem e
ela se decidisse a comer e a beber; ou então a deixaria
morrer de fome e sede.
O homem, que havia compreendido as palavras trocadas pelo galo
e o cão, levantou-se e seguiu o conselho do galo: sua mulher,
depois de bem surrada, comeu e bebeu e fez tudo que seu marido
quis. [17]
Tendo contado o exemplo precedente, Da. Raposa disse que o Galo
era tão sábio que seria capaz de aconselhar em todas
as situações, não valendo a pena o rei ampliar
o seu conselho; sobretudo porque numa multidão de conselheiros
surge uma imensa variedade de intenções, opiniões
e vontades - variedade essa que muitas vezes leva o Conselho do
príncipe à perturbação.
Calando-se Da. Raposa, o Galo disse:
-Um papagaio estava numa árvore com um corvo; ao pé da árvore,
um macaco pusera lenha sobre um vaga-lume, julgando fosse brasa,
e soprava sobre a lenha, esperando fazer fogo com que se aquecesse.
Gritava o papagaio ao macaco que aquilo não era brasa e
sim um vaga-lume. O corvo disse ao papagaio que deixasse de querer
castigar ou ensinar alguém que não recebe nem conselho
nem correção. Repetidas vezes tornou o papagaio a
dizer ao macaco que se tratava de um vaga-lume, e não, como
ele supunha, de uma brasa. E a cada vez repreendia o corvo ao papagaio
por querer endireitar o que por natureza é torto. O papagaio
desceu da árvore e aproximou-se do macaco, a fim de fazê-lo
compreender melhor o que lhe vinha explicando; tão perto
chegou o papagaio do macaco que este o pegou e matou.
Ao ouvir esse exemplo contado pelo Galo, julgou o rei que era
endereçado a si e assumiu um ar furioso contra o Galo, demonstrando
seu descontentamento. Da. Raposa apanhou então o Galo, matou-o
e o comeu diante do rei.
Da. Raposa ficou sendo a única conselheira do rei, o Coelho
seu camareiro e o Pavão, porteiro; exultando de felicidade,
ela fazia do rei o que bem queria. No meio de toda essa felicidade,
lembrou-se ela [18] da traição que tramara contra
o rei, prometendo ao Elefante fazê-lo rei, depois de dar
cabo do Leão. Se dependesse dela, de bom grado continuaria
nessa boa situação, mas temia que o Elefante a denunciasse.
Por isso, decidiu buscar a morte do rei e dar ao Elefante o que
lhe prometera.
Capitulo VII: Da morte Da. Raposa
Da. Raposa não se esqueceu de procurar a morte do rei,
mas esqueceu-se da honra que este lhe fizera, situando-a acima
de todos os barões da corte. Um dia, ela disse ao Elefante
que chegara a hora de o rei morrer, principalmente porque tudo
estava adequado para isso, uma vez que não havia na corte
outro conselheiro além dela. O Elefante refletiu demoradamente
nas palavras de Da. Raposa e teve escrúpulos em consentir
na morte do rei. Por outro lado, temia desobedecer a ela, que podia
denunciá-lo e causar-lhe a morte. Finalmente, decidiu não
se associar a Da. Raposa, pois doía-lhe a consciência
em dar morte ao rei. Não deixava também de recear
que se ele se tornasse rei, ela haveria de traí-lo, assim
como traía ao Leão. Preferiu então o Elefante
pôr em risco a vida a incidir em traição contra
seu rei natural. Tais considerações levaram-no a
dizer de si para si que, do mesmo modo que Da. Raposa queria pela
astúcia levar o rei à morte, assim também
ele usaria de astúcia para que o rei fizesse Da. Raposa
perecer.
-Pois, argumentava ele, se no corpo de Da. Raposa cabem traição,
astúcia e habilidade, quanto mais no meu que é tão
grande deve caber lealdade, sabedoria e astúcia.
-Em que estais a pensar, Senhor Elefante? - disse-lhe Da. Raposa.
Por que não vos preocupais em tornar-vos rei antes que a
Serpente, tremendamente sábia e esperta, retorne de sua
missão?
Então concebeu e se dispôs o Elefante a esperar a
Serpente, antes de tentar qualquer coisa contra Da. Raposa e que
estudaria com a Serpente como o rei mataria Da. Raposa. Esta, vendo
que o Elefante negligenciava seu plano, receou que a Serpente voltasse
e que o Elefante a denunciasse; por isso pediu ao Elefante que
se apressasse, do contrário ela [19] conduziria o caso de
um modo que ele nem podia imaginar.
Assustadíssimo com a astúcia de Da. Raposa, o Elefante
quis saber em que condições ela desejava ficar com
ele, uma vez feito rei. Respondeu ela que desejava ficar com ele
nas mesmas condições em que estava com o rei, ou
seja, ser sua única conselheira, tendo o Coelho como camareiro
e o Pavão como porteiro. Depois de ouvir as condições
de Da. Raposa, perguntou-lhe o Elefante de que maneira haveria
o rei de morrer.
Ela expôs com estas palavras a maneira como imaginara a
morte do rei:
-O Javali, graças a seu porte grave e força, julga-se
igual ao rei. Direi a ele que se proteja do rei, que deseja matá-lo.
Ao rei direi que tenha tento do Javali, que almeja ser rei, e o
induzirei a matá-lo. Quando o Javali estiver morto, o rei
há de estar cansado da batalha travada. Então, Senhor
Elefante, podereis facilmente matar o rei e ficar reinando em seu
lugar.
Pela maneira planejada por Da. Raposa, compreendeu o Elefante
que ela o enganava. Disse-lhe então:
-Sem testemunhas, toda promessa é vã. Parece-me,
pois, salutar que tenhais testemunhas da promessa que desejais
que vos faça, a saber: que sejais minha única conselheira,
que o Coelho seja meu camareiro e o Pavão meu porteiro.
Caso contrário, se eu negar o que vos prometi e não
tiverdes testemunhas, não podereis provar. E se porventura
me torno rei, não me sentirei talvez mais obrigado a vos
honrar do que o faço agora que não sou rei e vós
sois conselheira do rei.
Da. Raposa refletiu longamente no que dizia o Elefante e teve
medo de que sua traição fosse descoberta pelas testemunhas.
Vendo a preocupação dela, [20] disse-lhe o Elefante
que as melhores testemunhas que ela podia ter eram o Coelho e o
Pavão, que tinham medo dela e se agradariam de ser seus
servidores. Nem devia ela temer que eles viessem a denunciá-la
de qualquer segredo. Da. Raposa achou bom o conselho que lhe dava
o Elefante, o qual, na presença do Coelho e do Pavão
fez sua promessa a Da. Raposa. O Coelho e o Pavão, por sua
vez, prometeram ao Elefante e a Da. Raposa guardar segredo.
Em seguida, o Elefante aconselhou Da. Raposa que dissesse primeiro
ao Javali que o rei desejava matá-lo; depois, que o dissesse
ao rei. Procurou então Da. Raposa primeiro o Javali, e enquanto
falava com ele, o Elefante foi ter com o rei e contou-lhe tudo
o que com ela planejara. Pedindo perdão ao rei por ter pensado
em traí-lo, assegurou-lhe estar arrependido e preferir ser
um súdito leal a um rei traidor.
Disse o Leão:
-Como posso certificar-me de que o que dizeis, Elefante, é verdadeiro?
Respondeu-lhe o Elefante que ele podia reconhecê-lo no fato
de Da. Raposa tanto ter maquinado que não restava no Conselho
real outro animal além dela; e ao Coelho, que por natureza
a temia, o mesmo acontecendo com o Pavão - trouxera a ambos
para o palácio.
-Vede, senhor Leão, esta outra evidência que vos
dou: Da. Raposa foi ter com o Javali, dizendo-lhe que vós
o quereis matar; outro tanto fará convosco, falando que
o Javali quer matar-vos e vos aconselhará a mostrar um semblante
orgulhoso, a fim de que o Javali tome como verdadeiro o quanto
Da. Raposa lhe disse.
A estas palavras, o Elefante acrescentou que o Coelho e o Pavão
haviam concordado com a morte do rei. Este se espantou muitíssimo
de que Da. Raposa, a quem concedera tantas honras, pudesse engendrar
contra ele engano e traição. E disse:
-De meu pai ouvi que meu avô, rei de imensas terras, quis
rebaixar os barões aos quais pertencem as honras, e exaltar
os animais vis, aos quais honras não convêm. Entre
estes se achava o Macaco, que foi cumulado de honras. Esse Macaco,
por se parecer com o homem, desejava ser rei, e em troca das honras,
concebeu a traição do meu avô.
-Senhor, observou o Elefante, numa taça pequena não
cabe muito vinho e numa pessoa de baixa índole não
se acumula muita honra nem muita lealdade. Por isso convém
que liquideis Da. Raposa e formeis um bom Conselho, exercendo livremente
vossa soberania, sem submeter a uma pessoa pérfida a nobreza
que Deus vos concedeu pelo nascimento e pelo cargo.
Em seguida o Elefante foi ter com o Javali, já instruído
por Da. Raposa, e disse-lhe que sabia o que ela tramara. O Javali
surpreendeu-se de o Elefante estar ciente e este lhe contou tudo.
Enquanto os dois conversavam, Da. Raposa foi ao Leão e lhe
disse que o Javali pretendia matá-lo. Isso bastou para que
o Leão percebesse que ela o queria trair. O rei reuniu a
sua volta inúmeros barões, estando entre eles o Elefante,
Da. Raposa, o Coelho e o Pavão. Diante de todos, o Leão
mandou que o Coelho e o Pavão lhe dissessem a verdade sobre
o testemunho que haviam prometido fazer a Da. Raposa, após
a morte dele. O medo do Coelho e do Pavão foi enorme [21] e muito maior ainda o de Da. Raposa, que dirigiu ao rei estas palavras:
-Senhor rei, para provar se vossos barões são íntegros
e leais, eu disse ao Elefante e ao Javali o que viestes saber.
Quanto ao Coelho e ao Pavão, asseguro-vos que nunca lhes
falei o de que me acusa o Elefante.
Da. Raposa estava confiante de que o Coelho e o Pavão,
que a temiam tanto, não ousariam acusá-la ao rei
nem revelariam nada.
Às palavras de Da. Raposa, o rei lançou um olhar
terrível ao Coelho e ao Pavão, dando um urro fortíssimo,
a fim de que a natureza de sua alta soberania exercesse maior influência
na consciência deles do que o medo que sentiam de Da. Raposa.
E tendo urrado assim forte, disse com ar furioso ao Coelho e ao
Pavão que contassem a verdade. Os dois não puderam
conter-se e disseram a verdade ao rei. Então o próprio
rei matou Da. Raposa.
Depois da morte de Da. Raposa, a corte real ficou em paz. O rei
incluiu o Elefante, o Javali e outros barões honrados em
seu Conselho e dele expulsou o Coelho e o Pavão.
Termina aqui o Livro das Bestas que Félix levou a um rei
para que ele, olhando o que fazem os animais, visse como deve reinar
e guardar-se dos maus conselhos e dos homens falsos.
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