Em
1311, nas vésperas do Concílio
de Viena, Ramón Llull conta a sua vida, presumivelmente
aos seus amigos da Cartuxa de Vauvert. Mão anónima
escreveu a Vida Coetânea, que permanece a fonte quase única
para o conhecimento da biografia do Doutor Iluminado e, por conseqüência
também desta Vida de Ramón. Thomas Le Myésier,
ao reunir os textos lullianos para o Electorium que havia de entregar
os manuscritos da Biblioteca de Vauvert, a que Ramón doara
uma cópia de todas as suas obras.
Para a tradução, tomei por base a versão
castelhana de Ana Maria Saavedra e Francisco Samaranch, usando
a latina para tirar dúvidas e a catalã para suavizar
a estrutura demasiado rígida da tradução castelhana,
ela mesma feita muito junto à letra do original latino.
Os textos latino e catalão da Vita Coetanea encontram-se
em Ramón Llull, Obras Literárias, edição
preparada e anotada por Miguel Battlori e Miguel Caldentey (BAC,
1948).
1. Em honra, glória e amor do único Senhor Deus
Nosso Jesus Cristo, a instância de certos amigos seus religiosos,
referiu Raimon e permitiu que fosse escrito o que segue sobre a
sua conversão e penitência e sobre alguns feito seus.
2. Sendo Raimon senescal da mesa do Rei de Maiorca, ainda jovem,
e muito dado a compor vãs cantilenas ou canções
e outras leviandades do século, estava uma noite sentado
junto à cama, disposto a compor e a escrever em vulgar uma
cantiga sobre certa dama a quem amava com amor vão. Começava
a escrevê-la quando, olhando à direita, viu Nosso
Senhor Jesus Cristo pregado na Cruz. Vendo-o, sentiu medo e, deixando
o que tinha entre mãos, meteu-se na cama para dormir.
3. Levantando-se no dia seguinte, voltou às vaidades de
sempre, pouco preocupado com aquela visão; e passados quase
oito dias, no mesmo lugar e cerca da mesma hora, de novo se dispôs
a escrever e a terminar a dita canção; e de novo
lhe apareceu o Senhor da Cruz, como da primeira vez; mais aterrado
do que aquando da primeira aparição, Raimon entrou
na alcova e adormeceu, como antes tinha feito; e nem no dia seguinte,
não se preocupando com a nova aparição, deixou
o devaneio. Pelo contrário, pouco tempo depois, esforçou-se
por acabar a canção começada, até que,
com intervalo de apenas alguns dias, lhe apareceu o Salvador uma
terceira e uma quarta vez, sempre da mesma maneira.
4. À quarta, ou melhor, à quinta vez, apresentando-se-lhe
a mesma aparição, aterrado em extremo, entrou na
alcova, interrogando-se toda a noite sobre o que podiam significar
aquelas aparições repetidas tantas fezes. Por um
lado, alturas havia em que lhe ditava a consciência que aquelas
aparições não pretendiam senão levá-lo
a deixar imediatamente o mundo e a entregar-se por inteiro ao serviço
do Senhor Jesus Cristo; por outro, a mesma consciência proclamava
que ele era culpado desde há muito e indigno do serviço
de Cristo. E assim, ora debatendo consigo mesmo estas coisas, ora
rezando a Deus com mais recolhimento, passou insone aquela noite,
numa aflição.
Finalmente, pelo dom do Pai das Luzes, considerou a mansidão
de Cristo e a paciência e misericórdia que teve e
tem para com os pecadores; e assim entendeu, por fim, com toda
a certeza, ser vontade de Deus que Ramón deixasse o mundo
e servisse, daí em diante, de todo coração,
a Cristo.
5. Pôs-se, então, a pensar qual seria o serviço
que mais agradaria a Deus e pareceu-lhe que nada Lhe podia prestar
maior ou melhor serviço que dar a própria vida e
a alma por amor Dele e em Sua honra; e isto, convertendo ao Seu
culto os Sarracenos, cuja multidão cerca inteiramente os
Cristãos. Mas, com isto, voltando a si mesmo, considerou
como era falho de toda a ciência necessária a tão
alto empreendimento, pois até de gramática não
aprendera senão muito pouco. E sofreu muito, consternado
por este pensamento.
6. Assim, enquanto no espírito angustiado revolvia estas
coisas, aconteceu que, não sabe ele mesmo como, mas sabe-o
Deus, entrou no seu coração um veemente ditame da
razão: que, mais tarde, ele havia de fazer um livro, o melhor
livro do mundo, contra os erros dos Infiéis; no entanto,
como não visse maneira alguma de escrever um tal livro,
muito se maravilhara; mas quanto mais se maravilhara, mais crescia
nele a força daquele instinto ou desígnio de fazer
o livro predito.
7. Considerando de novo que, mesmo concedendo-lhe Deus, com o
tempo, escrever o livro predito, pouco ou nada, no entanto, poderia
fazer sozinho, em especial por ignorar completamente a língua árabe,
própria dos Sarracenos. Mas ocorreu-lhe que iria junto do
Papa e dos Reis e Príncipes cristãos, para os incitar
e obter deles que se constituíssem, em diversos reinos e
províncias apropriados, mosteiros onde pessoas escolhidas,
religiosos ou outros, com capacidade para tal, se dedicariam a
estudar as línguas dos Sarracenos e outros Infiéis,
a fim de que, de entre aqueles convenientemente instruídos,
fosse sempre possível conseguir pessoas aptas e mandá-las
pregar aos sobreditos Sarracenos, para lhes manifestar a piedosa
verdade da Fé Católica que está em Cristo.
8. Estavam já estes três firmemente concebidos no
seu espírito, a saber: aceitar a morte por Cristo, convertendo
ao seu serviço os Infiéis; escrever o tal livro,
se Deus lho concedesse, assim como solicitar a fundação
de mosteiros para que neles se aprendessem diversas línguas,
como já se disse, subiu Raimon no dia seguinte a uma igreja
não muito distante e com lágrimas devotadas rogou
ao Senhor Jesus Cristo que se dignasse levar a cabo, se Lhe aprouvesse,
os três citados desígnios que Ele próprio,
misericordiosamente, lhe inspirara ao coração.
9. Logo voltou às suas coisas, ainda extremamente imbuído
da vida e leviandade seculares e durante os três meses seguintes,
quer dizer, até à festa de S. Francisco, continuou
fraco e indolente quanto à realização dos
seus três propósitos. Mas, nesse mesmo dia, quando
um Bispo pregava no convento dos Frades Menores, na presença
de Raimon e explicava como S. Francisco abandonara e rejeitara
tudo para unir-se com mais firmeza apenas a Cristo, vendidos imediatamente
os bens, reservando apenas uns poucos que provessem ao sustento
da mulher e dos filhos, confiando-se totalmente a Cristo, partiu,
na intenção de não mais regressar à sua
terra, em direção a Santa Maria de Rocamador, a Santiago,
e a diversos outros lugares sagrados, para rogar ao Senhor e aos
seus santos que o encaminhassem naqueles três propósitos
que, como já dissemos, o Senhor tinha posto no seu coração.
10. Cumprida a peregrinação Raimon dispôs-se
a tomar o caminho de Paris, para ali aprender gramática
e mais alguma outra ciência adequada aos seus objetivos.
Mas os parentes e amigos e principalmente Frei Raimon de Penyafort,
da Ordem dos Pregadores, que noutros tempos compilou as Decretales
do Senhor Papa Gregório IX, pela persuasão e conselhos
o dissuadiram desta viagem e, por assim, dizer, induziram-no a
regressar à sua Cidade de Maiorca.
11. Quando aí chegou, abandonando o modo de vida faustoso
que tivera, vestiu um hábito do burel mais grosseiro que
pode encontrar, e assim, nessa mesma cidade, estudou um pouco de
gramática e, tendo comprado ali mesmo um Sarraceno, aprendeu
com ele a língua árabe. Passados nove anos, aconteceu
que o Sarraceno, estando Raimon ausente, blasfemou o nome de Cristo;
ao sabê-lo, no regresso a casa, pelos que ouviram a blasfêmia,
movido pelo grande zelo da sua Fé, Raimon bateu-lhe na boca,
na fronte e no rosto. O Sarraceno concebeu, por isto, um rancor
extremo e começou a imaginar a maneira de matar o seu senhor.
12. Arranjou, às escondidas, uma espada e vendo, um dia,
Raimon sentado, sozinho, arremessou-se sobre ele, atacando-o com
a espada e gritando, num rugido terrível: "Estás
morto!" Prouve a Deus que Raimon desviasse um pouco o braço
do atacante mas, mesmo assim, ficou gravemente ferido no estômago;
e conseguiu dominá-lo, derrubando-o e arrebatando-lhe a
espada com violência. Acudiu a gente da casa e Raimon teve
de impedir que matassem o Sarraceno; permitiu, no entanto, que
o levassem, acorrentado, para a prisão, até que resolvesse
o que seria melhor fazer dele. Pois parecia-lhe demasiado severo
matar aquele que lhe ensinara o que tanto desejara, quer dizer,
a língua árabe; mas receava perdoar-lhe ou mante-lo
mais tempo ao seu serviço, sabendo que de futuro não
cessaria de maquinar a sua morte.
13. Assim, naquela perplexidade, subiu a uma abadia próxima,
e ali pediu a Deus orientação sobre aquele problema,
intensamente, durante três dias; e, passando o tempo, maravilhando-se
Raimon de que perdurasse no seu espírito a aludida perplexidade,
pareceu-lhe que o Senhor não lhe atendera a oração
e regressou tristemente a casa; e como no caminho fizesse um desvio
até à prisão para visitar o cativo, soube
que o próprio, com a corda que o prendia, se tinha enforcado.
E Raimon deu alegremente graças a Deus, não só por
lhe ter deixado as mãos inocentes da morte do Sarraceno,
mas por tê-lo libertado da grave perplexidade em que, pouco
antes, angustiado, Lhe dirigira as suas súplicas.
Passado isto, Raimon subiu a uma montanha, não muito distante
de sua casa, para poder contemplar a Deus com mais sossego. E tendo
aí permanecido quase oito dias, aconteceu que, estando ele
absorto a olhar os céus, o Senhor ilustrou, num repente,
o seu espírito e mostrou-lhe a maneira e a forma de escrever
o livro de que já se falou contra os erros dos Infiéis.
Dando Raimon infinitas graças ao Altíssimo, desceu
da montanha e regressou à citada abadia de La Real, começando
ali mesmo a organizar e a escrever o livro, chamando-lhe primeiro
Arte Maior, e logo depois Arte Geral; no seguimento dessa Arte
fez ele depois muitos livros, explicando neles insistentemente
os princípios gerais por outros mais específicos,
segundo a capacidade dos entendimentos simples, como lhe tinha
ensinado a experiência. Quando acabou de compor o seu livro,
achando-se ainda em La Real, subiu de novo a montanha e, no próprio
lugar em que se apoiavam os seus pés no momento em que o
Senhor lhe mostrou o método da Arte, mandou Raimon construir
um eremitério e ali permaneceu sem interrupção
mais de quatro meses, rogando a Deus dia e noite que, por misericórdia,
os dirigisse à prosperidade, a ele e à sua Arte,
a qual lhe fora dada para honrar o Senhor e para proveito da Sua
Igreja.
15. No eremitério, achegou-se-lhe um jovem pastor de ovelhas,
alegre e de rosto formoso, que lhe disse, sobre Deus e as coisas
celestes e especialmente sobre os anjos e outras questões,
numa só hora, tantas e tais excelências, que outro
homem qualquer teria demorado pelo menos dois dias inteiros. E
vendo o pastor os livros de Raimon, ajoelhou-se e beijou-os, regando-os
com lágrimas, e disse a Raimon que daqueles livros proviria
um grande bem à Igreja de Cristo. Deitou-lhe depois muitas
bênçãos proféticas, persignando-lhe
a cabeça e o corpo com o sinal da santa cruz, e foi-se embora.
Raimon, considerando tudo o que se passara, maravilhava-se; pois
nunca vira aquele pastor, nem ouvira falar dele a ninguém.
16. Passado tempo, ouvindo o Rei de Mallorques que Raimon tinha
escrito alguns bons livros, mandou-o buscar para que viesse a Montpeller,
onde ele então estava. E quando Raimon ali chegou, o Rei
fez examinar os livros por um frade da Ordem dos Menores; e, em
especial, umas meditações que tinha organizado como
devoções para cada um dos dias do ano, assinalando
trinta parágrafos especiais para cada dia. Estas meditações
achou aquele frade, não sem admiração, cheias
de profecia e devoção católica. Assim, Raimon
fez, naquela cidade, um livro sobre a Arte que lhe fora concedida
na montanha, a que chamou Arte Demonstrativa; leu-o publicamente
e deu sobre ele uma leitura em que explica de que modo a primeira
matéria constituem o caos elemental, e de que maneira os
cinco universais, assim como os dez predicamentos, derivam do mesmo
caos e estão nele contidos segundo a verdade católica
e teológica.
17. Por essa mesma altura, obteve Raimon do ei de Mallorques que
se construísse um mosteiro, no seu reino, bem dotado de
possessões, no qual pudessem viver treze frades menores,
que aprendessem a língua árabe para converter os
Infiéis; tanto a estes frades, como aos seus sucessores
naquele mosteiro, seriam dados quinhentos florins todos os anos,
para o seu sustento.
18. Mais tarde, Raimon dirigiu-se à Corte romana, a fim
de obter do senhor Papa e dos Cardeais, a instituição,
no mundo inteiro, de mosteiros semelhantes para o ensino das diversas
línguas. Mas, ao chegar à Corte, soube que o Senhor
Papa Honórico morrera havia pouco. Por isso, deixando a
Corte, encaminhou-se para Paris, a fim de aí comunicar ao
mundo a Arte que Deus lhe tinha dado.
19. Chegando a Paris, no tempo em que Berthaud chanceler dos Estudos,
leu na sua aula um comentário da Arte Geral, mandatado por
ele. Lido o comentário e vista a organização
dos escolares, Raimon voltou a Montpeller, onde leu de novo publicamente,
e fez um livro a que deu o título de Arte de Encontrar a
Verdade; Raimon pôs nesse livro, assim como em todos os que
fez aí para a frente, apenas quatro figuras, subtraindo
ou dissimulando doze das dezasseis que anteriormente apareciam
na sua Arte, por causa da fragilidade do intelecto humano de que
tivera experiência em Paris. E feito isto em Montpeller,
partiu a caminho de Gênova, onde traduziu em árabe
o dito livro da Arte Inventiva. Dirigiu depois a Roma os seus passos,
desejando, como anteriormente, obter que se fundassem mosteiros
em todo o mundo destinados ao ensino das diversas línguas;
mas, dado o escasso êxito ali alcançado, dados os
impedimentos postos pela Cúria ao seu intento, deliberou
regressar a Gênova, na idéia de passar à terra
dos Sarracenos, para tentar fazer sozinho alguma coisa entre eles,
discutindo com os sábios e manifestando-lhes, segundo a
Arte recebida de Deus, a encarnação do Filho de Deus
e a beatíssima Trindade das Pessoas Divinas em suma unidade
de essência, em que não acreditam os Sarracenos, que,
cegos, afirmam adorarem os Cristãos três deuses.
20. E tendo-se divulgado depressa entre os Genoveses que Raimon
tinha já chegado na intenção de partir para
a terra dos Sarracenos, a convertê-los, se pudesse, à Fé de
Cristo, ficou o povo muito edificado, esperando que Deus fizesse
por intermédio dele algum bem notável entre os Sarracenos.
Pois tinham ouvido que Raimon, depois da sua conversão à penitência,
recebera por via divina, em certa montanha, uma ciência santa
para a conversão dos Infiéis. Mas o Senhor, em meio
da alegria do povo, visitou Raimon como Aquele que se manifesta
ao romper da alba e sujeitou-o, de súbito, a uma tentação
gravíssima; pois estando o navio aparelhado, embarcados
os livros de Raimon e tudo o que lhe era necessário, e prestes
a fazer-se ao mar, assaltou-o uma idéia fixa, a saber, que
assim que chegasse à terra dos Sarracenos eles o haviam
de lapidar, ou pelo menos o encarcerariam em prisão perpétua.
Por isso Raimón, temendo pela pele, como noutros tempos
S. Pedro Apóstolo na Paixão do Senhor, esquecido
o seu propósito de morrer por Cristo convertendo ao seu
culto os Infiéis, deixou-se ficar em Gênova, detido
por um temor paralisante, abandonado a si mesmo, permitindo-o e
dispondo-o assim o Senhor para que não voltasse a presumir
vãmente de si próprio. Assim que o navio abandonou
Gênova, logo Raimon caiu no mais completo desespero; e, pensando
no enorme escândalo contra a fé que o povo lhe assacaria
e estimando com toda a certeza que Deus o condenaria, feriu-lhe
o coração um tal sofrimento que foi acometido de
uma febre gravíssima; e, assim, definhando muito tempo em
Gênova, sem encontrar alguém a causa da doença,
quase ficou Raimon reduzido a nada.
21. Finalmente, ao chegar o dia santo da Festa do Pentecostes,
pediu que o levassem à Igreja dos Frades Pregadores e enquanto
ouvia os Irmãos cantar o hino Veni Creator, gemeu de si
para si: "Ah! Poderá salvar-me este Espírito
Santo?". E, desfalecendo, conduzido ao dormitório dos
frades, deixou-se cair numa cama; estava ali estendido, olhando
para cima, quando viu no teto uma luz pequenina, assim como uma
estrela pálida, e ouviu dela uma voz que dizia palavras: "Nesta
Ordem podes salvar-te". E Raimon mandou chamar os frades daquela
casa, pedindo-lhes que lhe vestissem imediatamente o hábito;
mas os frades adiaram a investidura, por causa da ausência
do prior.
22. De volta ao seu hospício, Raimon lembrou-se que os
Frades Menores acolhiam melhor a Arte dada por Deus na montanha,
que os Pregadores. E assim, na esperança que os Frades Menores
promovessem com mais eficácia a Arte, em honra do Senhor
Jesus Cristo e em proveito da sua Igreja pensou que, deixando afinal
os Pregadores, havia de entrar na Ordem dos Frades Menores. E enquanto
assim discorria, apareceu junto a si, como que pendurado na parede,
um cinto ou corda semelhante ao que cinge o hábito dos Frades
Menores; e esta visão consolou-o uma horinha, até que,
ao olhar para cima viu aquela luz ou estrela pálida que
já vira antes, estendido na cama, no convento dos Pregadores,
e ouviu uma voz que lhe dizia, ameaçadora: "Não
te disse já que só na Ordem dos Pregadores é que
te podes salvar? Vê lá o que fazes!"
23. Considerando Raimon por um lado a sua condenação
se não se juntava aos Dominicanos e, por outro lado, a perdição
da sua Arte e dos seus livros se não entrava na Ordem dos
Menores, escolheu (o que foi extremamente admirável) a condenação
eterna em vez da perda da Arte, que sabia ter recebido de Deus
para a salvação de muitos e maior honra do próprio
Deus. E assim, apesar de a estrela o desaprovar, mandou chamar
o guardião dos Menores, a quem pediu que lhe impusesse o
hábito; e ele concedeu dar-lho quando Raimon estivesse mais
próximo da morte.
24. Embora desesperando da salvação Raimon quis,
mesmo assim, para não passar por herético aos olhos
dos frades ou do povo, confessar-se superficialmente e redigir
o testamento. Quando o sacerdote trouxe à sua presença
o corpo de Cristo e lho apresentou, de pé, diante dele,
Raimon sentiu que, como se forçado pela mão de um
homem, o rosto que mantinha reto, se lhe virava para o ombro direito
e pareceu-lhe que nessa mesma altura o corpo de Cristo que o sacerdote
lhe oferecia, passando para o lado do ombro esquerdo, lhe dizia: "Sofrerás
o castigo que mereces, se me receberes assim!". Mas Raimon,
firme na sua resolução de antes querer condenar-se
eternamente que fazer perder, por sua má fama, a Arte revelada
em honra de Deus e para salvação de muitos, sentiu
outra vez como se a mão de um homem lhe torcesse a cara,
até a deixar de novo direita; e assim, agora de frente,
vendo o corpo do Senhor nas mãos do sacerdote, deitou-se
abaixo do leito e beijou o pé do padre; e assim recebeu
o corpo de Cristo, com devoção fingida, para que
se salvasse a Arte. Oh! Tentação admirável,
ou melhor, dádiva da provação divina! O patriarca
Abraão, noutros tempos, contra toda a esperança,
teve esperança; Raimon, no entanto, preferindo obstinadamente à sua
salvação a da Arte ou doutrina, para que muitos se
convertessem a conhecer, amar e prestar culto a Deus, como o Sol
que, coberto de nuvens, não deixa por isso de brilhar, desesperando
de Deus maravilhosamente por um certo obscurecimento do seu espírito,
deu provas de amar a Deus infinitamente mais que a si mesmo, como
se pode deduzir deste relato.
25. Enquanto Raimon assim estava detido por uma grave doença
do corpo e do espírito, ouviu dizer que havia no porto uma
galera pronta a seguir para Túnis. Quando isto ouviu, e
parecendo despertar de um sono pesado, pediu que o levassem, junto
com os seus livros, para bordo do navio; mas amigos seus, vendo-o às
portas da morte, compadeceram-se dele e, embora contrariado, trouxeram-no
de novo a terra, com o que sofreu muito. No entanto, sabendo Raimon
muito tempo depois que outro navio, que os Genoveses chamam barca,
aparelhava para se dirigir à dita cidade ou reino dos Sarracenos,
ou seja, a Túnis, pediu que o transportassem ao barco, com
os livros e as outras coisas de que precisava, contra vontade e
conselho dos seus amigos; e quando os marinheiros, saindo do porto,
começaram a navegar, Raimon recobrou imediatamente, por
uma misericordiosa ilustração do Espírito
Santo, na alegria do Senhor, juntamente com a saúde do corpo
enfermo, a esperança da consciência, que julgara perdida
naquela obnubilação; de tal modo que, em pouquíssimos
dias, e para admiração de todos os que com ele iam
e dele próprio, se sentiu num estado de espírito
e de corpo tão bom como nunca estivera em toda a sua vida
passada.
26. Deu por isso graças a Deus, como se deve. Entraram
no porto de Túnis, desembarcaram e dirigiram-se para a cidade.
Raimon convocou, dia após dia, os mais versados na Lei de
Maomé e dizia-lhes, entre outras coisas, que conhecia bem
os fundamentos da Lei dos Cristãos em todos os seus artigos
e que viera na intenção de se converter à seita
deles no caso de, depois de ter ouvido os princípios da
sua Lei e discutido com eles sobre os mesmos, aqueles se revelassem
superiores aos dos Cristãos.
Dia após dia vinham junto dele, cada vez mais sábios,
mostrando-lhe os fundamentos da sua Fé, para assim o converterem;
Raimon respondendo facilmente às suas razões, dizia:
"O sábio deve sustentar a Fé que atribui ao
Deus eterno - em que acreditam todos os sábios do mundo
- o máximo de bondade, de potência, de glória,
de perfeição e restantes atributos similares, e isto
na maior concordância. A Fé mais louvável é a
que admite a maior concordância ou conveniência entre
Deus, causa suprema e primeira, e o seu efeito. Mas constato agora,
pelo que me propondes, que vós, Sarracenos, sujeitos à Lei
de Maomé, não entendeis que as Dignidades divinas
possuam atos próprios, intrínsecos e eternos, sem
os quais seriam ociosas por toda a eternidade. Digo que os atos
da bondade, são o bonificante, o magnificável e o
magnificar, e assim com todas as Dignidades divinas. Ora, vejo
que não atribuis estes atos senão a duas destas dignidades
ou razões, a sabedoria e a vontade, o que mostra claramente
que considerais ociosas todas as outras Dignidades divinas, a saber
a bondade, a grandeza, etc., introduzindo assim, entre elas, a
desigualdade e a discordância, o que é ilícito.
Os Cristãos provam, de um modo evidente, pelos atos intrínsecos
e eternos das Dignidades, razões ou atributos divinos, que
numa simplicíssima essência e natureza divina há trindade
de pessoas, a saber, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
27. "E isto posso-vo-lo eu demonstrar, com a ajuda de Deus,
graças a uma Arte divinamente inspirada, crê-se, a
um eremita cristão, se quiserdes debater comigo tranqüilamente
tudo isto uns dias. Tornar-se-à então claro também
para vós, se o desejardes, da maneira mais racional, por
meio dessa Arte, como é que na encarnação
do Filho de Deus a causa primeira e suprema convém e concorda
por participação - quer dizer, pela união
do Criador e da criatura na pessoa una de Cristo - com o seu efeito,
da maneira mais conforme à razão. A Arte demonstrar-vos-à ainda
que isto se realiza da maneira mais excelente e nobre na paixão
que o Filho de Deus, Cristo, se dignou sofrer voluntariamente e
misericordiosamente pela Humanidade que assumiria para nos redimir
nos nossos pecados e da corrupção do primeiro pai
e reconduzir-nos ao estado de glória e fruição
divinas, para o qual e em vista do qual Deus bendito nos criou".
28. Parecia que Raimon começava assim a iluminar os espíritos
dos Infiéis, quando um dos mais famosos Sarracenos, compreendendo
as intenções e as palavras de Raimon, suplicou e
exortou o Rei a ordenar a decapitação daquele homem
que se esforçava por subverter a nação muçulmana
e destruir, com ousadia temerária, a Lei de Maomé.
A instância desse personagem famoso e de muitos outros, o
Rei mandou reunir o conselho para discutir o caso. A vontade do
Rei pendia já para a morte de Raimon, quando um dos conselheiros,
homem prudente e cheio de sabedoria, vendo isto, tratou de impedir
um tal crime, convencendo-o de que não seria honroso para
ele matar o homem, que, embora desejando propagar a sua Lei Cristã,
parecia cheio de bondade e prudência perfeitas; e acrescentou
que se consideraria bom sarraceno aquele que ousasse penetrar na
terra dos Cristãos para imprimir em seus corações
a Lei dos Sarracenos. O Rei aquiesceu às suas palavras e
renunciou `z morte de Raimon; mas ordenou imediatamente que ele
fosse expulso do Reino de Túnis. E quando o soltaram da
prisão, muitos o insultaram, lhe bateram, o humilharam.
29. Finalmente conduziram-no a um navio genovês que devia
aparelhar em breve. E enquanto assim o levavam, o Rei deu ordem
para que o lapidassem, se o encontrassem de novo do Reino.
Raimon sofria profundamente, porque tinha preparado para o Baptismo
personagens de nomeada e muita outra gente, que desejava de todo
o coração levar à plena luz da é ortodoxa,
antes de partir. O aguilhão desta perplexidade afligia assim
o homem de Deus, quando o navio a que o tinham conduzido largou.
Ao vê-lo partir, Raimon sentiu que o ameaçavam múltiplas
tribulações: se se afastava, veria recair nas armadilhas
da condenação eterna as almas que tinha preparado
para o culto cristão; e sabia já a que morte o destinava
a loucura dos Sarracenos, se ficasse. Mas, inflamado pelo amor
de Deus, não temia afrontar o perigo de morte, se conseguisse
com isso alguma coisa pela salvação das almas. E,
abandonando o navio que partia, entrou, às escondidas, num
outro barco que estava no porto: esperava poder chegar a terra
de qualquer maneira sem disso ser impedido pela fúria bestial
dos Sarracenos, para terminar, junto dos que tinha preparado, a
boa obra começada.
30. Estavam as coisas neste pé, quando um cristão
que, no aspecto e indumentária se parecia com Raimon, passou
pela cidade.
Os Sarracenos, julgando que era Raimon, apanharam-no e iam lapidá-lo,
enquanto ele clamava: "Não sou Raimon!" Foram
indagar e souberam que Raimon devia estar num navio; entretanto,
o homem escapou-se-lhes. Raimon ficou três semanas a bordo
e, vendo que nada podia fazer ao serviço de Cristo, partiu
para Nápoles, onde permaneceu, lendo a sua Arte, até à eleição
do Papa Celestino V.
31. Depois dirigiu-se à Cúria Romana para tentar
obter do Papa o que tanto desejara (e de que já se tratou
aqui), em favor da fé de Cristo e aí compôs
livros. Algum tempo depois, o papa Bonifácio VIII sucedia
a Celestino V. Raimon também lhe suplicou com todas as suas
forças em favor do que era útil à Fé Cristã.
E mesmo tendo de suportar muitas angústias, seguindo freqüentemente
o Soberano Pontífice, a sua intenção não
esmorecia, na esperança de que o Papa se dignasse escutá-lo,
pois que não era em proveito próprio que lho pedia
sem descanso, mas em prol do bem público da Fé.
32. Raimon compreendeu finalmente que nada obteria do Sumo Pontífice,
e partiu para Gênova, onde compôs alguns livros. Juntou-se,
depois, ao Rei de Maiorca e, depois de ter tido uma audiência
com ele, dirigiu-se a Paris, onde ensinou a sua Arte e compôs
muitas obras. Mais tarde, falou com o Rei e fez os seus pedidos
relativos a assuntos extremamente úteis à Santa Igreja
de Deus. Mas, vendo que pouco ou nada conseguia, regressou a Maiorca
onde ficou algum tempo, esforçando-se por trazer à via
da salvação, por discussões e prédicas,
os muitos Sarracenos que ali vivem. Também redigiu alguns
livros.
33. Estava Raimon nestas andanças, quando se espalhou a
notícia de que Cassiano, o Imperador dos Tátaros,
tinha atacado o reino da Síria e queria submetê-la
inteiramente ao seu domínio. Quando Raimon soube disto,
encontrando um navio aparelhado, atravessou o mar até Chipre
e aí soube que a notícia era completamente falsa.
Sentiu-se frustrado na intenção que o trouxera e
procurou um meio de consagrar esse tempo que Deus lhe concedera,
não à ociosidade, mas a qualquer iniciativa do agrado
de Deus e favorável ao próximo; pois Raimon escondera
no coração vigilante o conselho do Apóstolo: "Não
nos cansemos de fazer o bem, pois a seu tempo colheremos, se não
tivermos desfalecido" (Gal. 6,9) e o Profeta: "Iam chorando,
levavam a semente, ao voltar, cantarão, trazendo a colheita" (Sal.
126, 6).
34. Assim Raimon foi ter com o Rei de Chipre, pedindo-lhe entusiasticamente
que exortasse alguns infiéis e cismáticos - jacobitas,
nosculinos e muminos - a que assistissem às suas prédicas
e debatassem com ele. Raimon pediu ao Rei de Chipre que o enviasse
- uma vez realizado o que fosse possível pela edificação
daquela gente - junto do Sultão, que era sarraceno, e do
Rei do Egito e da Síria, para os instruir na Santa Fé Católica.
Mas o Rei mostrou-se indiferente aos seus rogos. Então,
esperando naquele "que prega a palavra com muita virtude" (Sal.
67,12), Raimon lançou-se corajosamente ao trabalho ao trabalho
entre eles, com sermões e debates, apenas com a ajuda de
Deus. Perseverando nas prédicas e nos debates, prostrou-o
uma doença grave. As duas pessoas que tinha ao serviço,
um clérigo e um criado, desviando de Deus o olhar e esquecendo
a própria salvação, resolveram espoliar criminosamente
o homem de Deus dos seus bens; e, ao perceber que o tinham envenenado,
Raimon despediu-os com mansidão.
35. Chegado a Famagusta, foi alegremente recebido pelo Mestre
do Templo, que estava na cidade de Limassol, e ficou com ele até se
restabelecer completamente. Depois, Raimon regressou por mar a
Gênova, onde publicou muitos livros, Foi, em seguida, a Paris,
onde ensinou com sucesso e escreveu um grande número de
obras. No tempo do Senhor Papa Clemente V, deixando a cidade de
Paris, foi para Lyon onde apresentou uma petição
ao Sumo Pontífice sobre um assunto do maior interesse para
a fé, a saber, que o Papa ordenasse a fundação
de mosteiros em que pessoas escolhidas pela sua devoção
e aptidões aprendessem os idiomas das diversas nações
para poderem, assim, pregar o Evangelho a todos os Infiéis,
segundo o preceito de Cristo: "Ide pelo mundo e pregai o Evangelho
a todas as criaturas" (Mc, 16, 15). Mas o Papa e os Cardeais
ligaram pouco ao seu pedido.
36. Daí, Raimon voltou a Maiorca e fez-se ao mar para a
terra sarracena a que chamam Bugia e aí, de pé, na
praça principal da cidade, Raimon pôs-se a gritar: "A
Lei dos Cristãos é verdadeira, santa e do agrado
de Deus. A Lei dos Sarracenos é falsa e errónea e
estou pronto a demonstrá-lo". Enquanto o proclamava,
na língua dos Sarracenos, exortando à fé de
Cristo a multidão de pagãos que acorria, muitas mãos ímpias
se ergueram contra ele, na intenção de o lapidarem
e tanto se assanhavam, que o Bispo da cidade mandou emissários
com ordem de o conduzirem à sua presença. Quando
Raimon se achou diante do bispo, ele disse-lhe: "Que loucura
te tomou para ousares atacar a verdadeira Lei de Maomé?
Acaso não saberás que quem se atreve a semelhante
temeridade se expõe à sentença capital?" Raimon
respondeu: "O verdadeiro servo de Cristo, conhecer da verdade
da Fé Católica, não deve temer o perigo da
morte corporal, quando pode obter a graça da vida espiritual
para as almas dos Infiéis".
37. O Bispo disse-lhe: "Se, de fato, acreditas que a Lei
de Cristo é verdadeira, e se consideras que a Lei de Maomé é falsa,
prova-o com uma razão necessária", pois era
aquele Bispo versado em filosofia. E Raimon respondeu-lhe: "Acordemos
sobre um ponto comum. Depois, dar-te-ei a razão necessária".
Isto agradou ao bispo. E Raimon interrogou-o: "Será que
Deus é perfeitamente bom?", "Sim, respondeu o
bispo. Então Raimon, que queria provar a Trindade, falou
nestes termos: - "Todo o ser perfeitamente bom é em
si mesmo de tal modo perfeito que não precisa de fazer o
bem fora de si, nem de o mendigar. Dizes que Deus é perfeitamente
bom desde a eternidade e para a eternidade: não precisa,
por isso, de mendigar o bem, nem de o fazer fora de si mesmo, pois,
se disso tivesse necessidade, então já não
seria perfeitamente bom simpliciter. Ora, negas a Santíssima
Trindade. Se ela não existe, Deus não foi perfeitamente
bom desde a eternidade, até produzido o bem do mundo no
tempo. Mas acreditas na criação do mundo e por isso,
Deus foi mais perfeitamente bom quando criou o mundo no tempo,
do que antes, pois a bondade é melhor quando se propaga,
do que quando fica inativa. Eis o que infiro por ti. Quanto a mim,
afirmo que a bondade se propaga desde a eternidade e para toda
a eternidade. Pertence, na verdade, à natureza do bem, que
ele se expanda, pois Deus Pai, sendo bom, pela sua bondade engendra
o Filho, que é bom; e de ambos procede, por espiração,
o Espírito Santo, que é bom."
38. Estupefato com este argumento, o bispo não replicou,
mas mandou encarcerar Raimon imediatamente. Além disso,
decretou que nem se pensasse em matar tal homem, pois queria ser
ele mesmo a condená-lo à morte com sentença
condigna. Ao sair da casa do Bispo para se dirigir à prisão,
Raimon apanhou aqui umas pauladas, ali uns murros e mais longe
arrastaram-no cruelmente pela barba que trazia muito comprida;
fecharam-no nas latrinas da prisão dos ladrões, onde
levou por algum tempo uma vida penosa; depois, mudaram-no para
uma cela dessa mesma prisão.
39. No outro dia, os padres da Lei reuniram-se perante o bispo
e pediram-lhe a morte de Raimon. Fizeram um conselho para deliberar
sobre a sua perdição e a maioria determinou que Raimon
comparecesse diante deles: se constatassem que se tratava de fato
de um homem de ciência, seria morto, sem remissão;
mas se não passasse de um ignorante e de um louco, perdoar-lhe-iam,
como a um louco. Ouvindo isto, um deles, que acompanhara Raimon
na travessia de Gênova a Túnis e assistira muitas
vezes às suas prédicas e às suas razões,
disse: "Livrem-se de fazer esse homem comparecer no pretório,
pois alegará razões tais contra a nossa Fé que
nos será difícil ou impossível resolvê-las".
Concordaram em que não comparecesse e, pouco tempo depois,
mandaram-no para uma prisão menos rigorosa. Os Genoveses
e os Catalães que ali havia reuniram-se e conseguiram que
lhe fosse dado um lugar mais decente: o que foi feito.
40. Raimon ficou na prisão seis meses. Os padres ou os
enviados do Bispo iam vê-lo muitas vezes; e para o converterem à Lei
de Maomé, prometiam-lhe mulheres, honras, uma casa e muito
dinheiro. Mas Raimon, o homem de Deus, "fundado na pedra dura" (Lc.
6, 48), dizia-lhes: "Se quiserdes acreditar no Senhor Jesus
Cristo, e se abandonardes essa Lei falsa, oferecer-vos-ei as maiores
riquezas e prometer-vos-ei a vida eterna". Mas como insistiam
tanto, um como outros, nestas coisas, decidiram, de comum acordo,
fazer cada um deles um livro, em que Raimon e os outros confirmariam
as Leis respectivas através dos argumentos mais eficazes
que encontrassem. E a Lei que se servisse dos argumentos mais firmes,
seria julgada a mais verdadeira. E quando Raimon se aplicava já eficazmente
no seu livro, chegou uma carta enviada pelo Rei de Bugia, que residia
em Constantina, com ordem de expulsar imediatamente Raimon de Bugia.
41. Raimon embarcou num navio que estava no porto da cidade, e
o mestre do navio recebeu ordem para o não deixar sair e
voltar a terra.
Na viagem para Gênova, desencadeou-se uma forte tempestade à altura
de Porto Pisano. Estavam a dez milhas daquele porto. O navio sofria
por todos os lados os choques terríveis da tempestade e
naufragaram; uns morreram afogados, outros salvaram-se com a ajuda
de Deus; e, entre eles, Raimon e o seu companheiro, que, tendo
perdido os livros e as bagagens, quase nus, chegaram à praia
numa barca. Chegando à cidade de Pisa, foi acolhido com
honras por alguns cidadãos. E embora fosse já velho
e fraco, teimando sempre na sua ação por Cristo,
o homem de Deus acabou aí a sua Ars Generalis Ultima. É digno
da imensa eficácia e do conhecimento perfeito e gostoso
dessa Arte e de todos os seus restantes livros, aquele que não
aspira à glória deste mundo e à vã filosofia,
mas ao amor e ao conhecimento profundo de Deus, como fim último
e supremo bem.
42. Acabando a Arte, terminando ali também muitos outros
livros e querendo incitar a comuna da cidade de Pisa ao serviço
de Cristo, propôs ao Conselho que ali mesmo se constituíssem
em Ordem uns religiosos soldados cristãos, destinados a
esse fim, a saber: manter guerra contínua contra os pérfidos
Sarracenos para a recuperação da Terra Santa. Condescendendo
agradecidos às suas palavras e admoestações,
escreveram sobre tão salutar assunto ao Sumo Pontífice
e aos Cardeais. E assim, obtidas estas cartas da cidade de Pisa,
Raimon tomou o caminho de Gênova, onde conseguiu outras semelhantes
e onde matronas devotas e viúvas que em grande número
acudiam a vê-lo, lhe prometeram vinte e cinco mil florins à Corte
do Papa, que naquele tempo estava em Avignon. Mas vendo que ali
nada obteria quanto ao seu propósito, dirigiu-se a Paris,
onde leu publicamente a sua Arte e numerosos livros que escrevera
em tempos passados. À leitura assistiu muita gente, tanto
mestres como estudantes, perante os quais não só expôs
uma doutrina corroborada por razões filosóficas,
mas que também professava uma sabedoria confirmada de forma
admirável pelos altos princípios da fé cristã.
43. Mas como observara que, por causa do comentador de Aristóteles,
Averrois, muitos se desviavam e não pouco da rectidão
da verdade e principalmente da Fé Católica, dizendo
que a fé cristã é impossível quanto
ao modo do entendimento, mas opiniando que é verdadeira
ao modo de crer, o que é deplorado pelo colégio dos
cristãos, Raimon procurou rejeitar por via demonstrativa
e de hábito científico este conceito, reduzindo-os
de vários modos à refutação: pois se
a Fé Católica é improvável segundo
o modo do entendimento, é impossível que seja verdadeira.
Sobre isto fez ele certamente alguns livros.
44. Mais tarde, ouvindo Raimon que o Santíssimo Padre,
o Senhor Papa Clemente V, iria celebrar um Concílio Geral
na cidade de Viena, no ano do Senhor de 1311, nas calendas de outubro,
propôs-se acorrer ao Concílio, a fim de ali pedir
três coisas para a reparação da fé ortodoxa.
A primeira, era que se fundasse lugar adequado em que homens devotos
e de inteligência vigorosa estudassem as diversas línguas,
a fim de saberem pregar a doutrina evangélica a todas as
criaturas. A segunda era que de todos os religiosos cristãos
de condição militar se formasse uma única
Ordem que promovesse guerras incessantes no Ultramar contra os
Sarracenos, até à recuperação da Terra
Santa. A terceira, que o Senhor Papa ordenasse rapidamente algum
remédio contra as opiniões de Averrois, que em muitas
delas se revelava corrupta da verdade, procurando, por meio de
homens católicos de largo entendimento e que buscassem não
a glória própria mas honrar a Cristo, erguer uma
oposição contra as tais opiniões e contra
os que as sustentam, pois parecem entravar o passo à verdade
e saber incriados, ao Filho de Deus Pai. A este propósito
Raimon compôs um livrito, que tem por título Liber
Natalis, onde promete prevenir contra eles com razões compulsivas,
tanto filosóficas como teológicas. As quais usou
a fundo, com a maior clareza, em alguns dos seus livros. Pois este
servo de Deus, verdadeiro manifestador da suma verdade e profundíssima
Trindade compôs, no meio dos seus trabalhos quotidianos,
mais de cento e vinte e três volumes.
45. Tinham passado já quarenta anos desde que dirigira
a Deus por inteiro o coração e a alma e todas as
suas forças e todo o seu pensamento; durante esse tempo
escreveu continuamente livros, quando podia, com toda a diligência.
E pode, com razão, pronunciar o dito do Profeta David: "O
meu coração lançou a língua, cálamo
de escriba que escreve rapidamente".
Em verdade, foi sua língua cálamo do escriba incriado,
do Espírito Santo, que dá a palavra aos que pregam
com muita virtude, sobre que, disse o Salvador aos Apóstolos: "Não
sois vós que falais, mas o Espírito Santo de vosso
Pai que fala em vós". E porque queria que a utilidade
dos seus livros fosse comum a todos, publicou muitos em língua árabe,
como conhecedor daquele idioma. Os seus livros divulgaram-se em
todo o mundo, mas fê-los reunir principalmente em três
lugares, a saber, no Mosteiro dos Cartuxos em Paris; em casa de
um nobre da cidade de Gênova e em casa de um nobre da cidade
Maiorca. |