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DO NASCIMENTO DO MENINO JESUS
Raimundo Lúlio

Versão de Mossèn Llorenç Riber
Revisão e notas de Miquel Batllori, S. I.

Tradução de Sérgio Alcides e Ronald Polito
Mariana, 1997

 
 

CARTA AO MAGNÍFICO SENHOR REI DA FRANÇA

Ao ilustríssimo e magnífico senhor Filipe, pela graça de Deus rei da França, gloriosíssimo e insigne por muito sincera caridade. (1)

Que o menino para nós nacido, um filho que se nos deu (2), e que ansiamos por encontrar, Jesus Cristo feito Homem, conceda-vos bom governo e vos oriente por inteiro a procurar a sua glória e a sua honra. Assim, clementíssimo Rei, aceitai com alegria este opúsculo, no qual, como um peregrino, podereis de algum modo contemplar o abençoado Recém-nascido, alcançando a contemplação de ambas as naturezas d'Ele, que juntamente com o Pai e com o Espírito Santo reina, Deus bendito em trindade de pessoas. Amém.

Proêmio

Ah, Senhor! Inspirai naqueles que crêem em Vós o afeto e a ação de fazerem-se semelhantes a Vós, e o irrevogável propósito de manterem-se constantes em tal pensamento, e de não terem nenhuma parte com os infiéis, e de cumprirem os mandamentos da vossa lei. Fazei-nos, Senhor, verdadeiros sem orgulho, humildes sem fingimento, alegres sem devassidão, justos sem erros, serenos sem jactância, pobres sem miséria; sem avareza, ricos; sábios mediante o estudo, sem vontade de parecer arrogantes.

Capítulo I: Primeira Dama

Aconteceu de véspera, às margens do Sena, nas imediações de Paris, que seis Damas se encontrassem por acaso num belo sítio ameníssimo. São os seus nomes: Louvor, Oração, Caridade, Contrição, Confissão, Satisfação. Louvor, a primeira de todas, queixou-se dos homens do século presente com este lamento:

- Ai! - disse Louvor - os homens não louvam a Deus em si mesmo, por si mesmo, nem nos outros em razão d'Ele mesmo, segundo pede a ordem, apesar de Ele ser essência sumamente nobre, incomparavelmente digna pela sua suprema dignidade, e insuperável pelo seu poder, comunicado às três divinas Pessoas, as quais por si mesmas são de todo louvor merecedoras: mas louvam-no fora d'Ele, em razão dos muitíssimos bens que lhes provê, segundo a sua infinita liberalidade. Com tais louvores, nunca me contentarei. Ao contrário, freqüentemente, ouço triste e magoada que muitos blasfemam Deus e minimizam o seu poder, dizem que Ele não pode por si só fazer todas as coisas sem uma causa mediadora, como, por exemplo, sem os céus. E, se uma vez ou outra tenho a sorte de ouvir algum verdadeiro louvor a Ele, nada menos que mil vezes sou obrigada a ouvir, por conta desses louvores, blasfêmias e delírios sem qualquer juízo. Por isso, melhor me fora abandonar este nome, e fazer-me um deserto n'alguma solidão, para não me ver forçada a ouvir tantas coisas indignas de Deus (que de todo louvor é digno), e assim escutar somente verdades.

Capítulo II: Segunda Dama

Em seguida exclamou Oração:

- Oh, como estou triste e transtornada, porque tantas vezes os homens me pedem que adore Deus (digníssimo de ser adorado: altíssimo pela sua bondade, grandeza e poder, eterno sem mudanças, sapientíssimo na verdade, boníssimo por sua vontade e perfeitíssimo na sua glória), para que, antes da glória eterna, a eles conceda e outorgue em abundância os bens da terra. Grande maravilha é que Deus possa suportar tal coisa de mim, e ainda me deixe viver. Ah, se nunca os homens houvessem conhecido o meu nome, nem eu houvesse jamais tido notícia dos homens!

E isto dizendo, chorou Oração.

Capítulo III: Terceira Dama

Depois de Oração, falou Caridade:

- Não é em vão que estamos tristes, minha muito querida irmã. Também eu sou a mais nobre das virtudes, que foi concedida à vontade dos homens para que por mim amem a Deus sobre todas as coisas, e como a eles mesmos amem o irmão próximo, guardando sempre a ordem que a cada um foi dada; de modo que os bens terrenos fossem comuns a todos os bons, e a paz e a concórdia juntas reinassem entre eles. No entanto, tudo aconteceu de modo muito diverso, pois viu-se justamente o contrário, o que parece perturbar toda a ordem e introduzir uma total confusão; os pobres morrem de fome, são negligenciados, andam nus, procuram e não encontram: enquanto os ricos se assoberbam com a abundância de seus bens, de onde nascem a gula, a avareza e outros males sem fim. E hoje em dia tem-se por mim ou pouca ou nenhuma consideração; mais ainda: tenho sido totalmente negligenciada. Que pensam os pecadores que farão sem mim? Se por ventura algum deles entrar no Reino, comigo entrará. Ninguém poderá impedir o julgamento do juiz eterno, nem poderá enganá-lo, sapientíssimo como é, capaz de ver tanto o visível quanto o oculto. Ai, quão pesada é minha dor, pois não vejo pessoa alguma sobre a qual eu tenha qualquer poder ou possa nela melhorar-me. E se existe alguém que tenha a mim e permanece ocioso, é contrário à minha natureza, sendo a si próprio muito nocivo.

Capítulo IV: Quarta Dama

Em seguida diz Contrição:

- Quando me lembro da multidão de males que existem e são feitos no mundo, notando que as criaturas se dispõem mal, a ponto de estarem entre as piores, muito me admira que eu possa viver e tenha vontade de existir, mediante um ato positivo e privado. A vontade dos homens é avessa a mim, porque quando me é mais conveniente dispô-la ao ato de arrependimento e desgosto pelos pecados cometidos, ela se afasta de mim, num ato contrário, sem temer o divino julgamento que a espera. Por esse agravo estou desfigurada e doente, toda estranha à minha natureza. A vontade, de tal forma pervertida, é abandonada à aflição dos suplícios eternos.

Capítulo V: Quinta Dama

Depois que assim falaram as quatro Damas anteriores (Louvor, Oração, Caridade e Contrição), Confissão, a quinta Dama, assim começou a dizer:

- Eu sou aquela virtude pela qual os homens sabem confessar-se dos pecados e julgar-se culpados, a tal ponto que sentem verdadeira contrição, minha irmã gêmea, de modo a que o manifestado responda à própria consciência, não permanecendo coisa alguma oculta, sem expressão externa. Relembre a memória, examine o entendimento o que se fez, e o modo como se fez, em ofensa de Deus ou do próximo, pela visão, pelo ouvido, pelo olfato, pelo tato, pelo gosto, pela maneira de falar e de quaisquer outras maneiras; e pense que será a satisfação possível e justa; e com todo o seu ânimo, tenha horror de seus pecados, e cumpra a penitência imposta. Por isso me lamento e me consumo em penas, porque poucas são as vezes que estou com os homens quando se confessam. Que direi? Que farei? Onde estarei, se não posso encontrar um amigo? Deus sabe até que ponto a cada dia é mais forte e amarga minha tristeza, e que jamais terei alegria enquanto não tiver encontrado a verdade entre os homens.

Capítulo VI: Sexta Dama

Diz Satisfação, serva da justiça, muito obediente e devota:

- Manda a justiça que se tire satisfação de todo ato humano que ofenda a Deus ou ao próximo. Se é a visão que peca, satisfarei a malfeitora com vigílias, com lágrimas, com suspiros emanados do coração, e a afastarei para que não veja a vaidade deste século. Se foi o ouvido que delinqüiu, escutando coisas ilícitas, eu o ocuparei com ouvir a palavra de Deus e escutar o ofício divino. E, se houver faltado pelo gosto, satisfarei a delinqüência com jejuns e me absterei de iguarias refinadas e de alimentos supérfluos, com os quais se delicia a fragilidade humana. Os pecados do tato, os satisfarei deixando de lado as coisas suaves e brandas e escolhendo as duras e ásperas. Serva sou da justiça para alcançar a virtude da castidade, segundo o que aconselha e manda a religião cristã, e para dar a Deus satisfação da imaginação, dos membros, das potências e de quaisquer atos humanos. Deixarei de uma vez todos os vícios, abraçando as virtudes, escolhendo a penitência, e seguindo o julgamento da razão e do entendimento que é quem sentencia do delito e da sua satisfação, para que, no final, surjam contrição, louvor, oração, e a caridade cale os afetos. Mas que benefício porta um tal preceito ditado pela justiça, se em tudo e por tudo campa e reina a injustiça? Pois esta, associada com todos os outros vícios (a saber: avareza, gula, luxúria, soberba, acídia, inveja, ira), tolhe-nos totalmente a mim e à justiça, que é a minha mãe; e os homens servem mais aos vícios que à virtude, e por isso o mundo é escuro e tenebroso.

Cada uma destas Damas tendo assim falado, decidiram abandonar o mundo e seguir livremente por paragens desertas, para não verem nunca mais no meio de tanta desolação homens endurecidos pelos vícios. Contra esta decisão falou Oração:

- Não é bom este acordo de abandonar o mundo e a linhagem humana, que Deus nosso senhor entregou à nossa vigilância e encarregou ao nosso cuidado, porque seria um mal muito grande, e danos maiores ainda se seguiriam. Vindes mais cedo, a meu ver. Há pouco nos foi anunciado que nasceu um Menino* da Virgem gloriosa, pobrezinho e pequenino, num presépio, envolto em poucas e pobres fraldas, proclamado Salvador do mundo e Filho de Deus pelos anjos e os profetas. Por isso, como o Filho de Deus se humilhou tanto ao se fazer homem, nascendo como um pequeno menino, em lugar pobre, aproximemo-nos com audácia e lhe roguemos com fé que Ele, tendo se humilhado dessa forma, digne-se a ouvir-nos, para que dos corações humanos possamos extirpar os vícios e aí semear as virtudes. De modo que cada uma de nós cumpra o seu ofício e plenamente realize sua ação.

O que disse Oração agradou e contentou as outras Damas, e cuidadosamente se dirigiram a adorar o pequeno Recém-nascido.

Capítulo VII: Como encontraram o menino

Iam, então, as ditas Damas assim falando do Recém-nascido, com ânsia de adorá-lo, cada uma ao seu estilo. Chegadas ao presépio onde o Menino estava, a Justiça e a Misericórdia, como porteiras, não quiseram permitir que se aproximassem mais, enquanto não explicassem a intenção que tinham em querê-lo adorar e contemplar, cada uma a sua maneira, e obter a sua graça para poder desde aquele momento andar pelo mundo e aí produzir em sua honra muitos frutos. Para demonstrá-lo, cada uma começou a declarar a sua intenção.

Capítulo VIII: De Louvor

E, ajoelhada diante das portas, Louvor foi a primeira a manifestar o seu afetuoso propósito:

- Coisa justa e digna é que o Menino divino seja louvado, porque é bom e grande, pois que n'Ele estão unidas a ação humana e a ação divina. Não tenho virtude bastante para louvá-lo como deve ser, nem tampouco nenhuma outra criatura; porém quero louvá-lo conforme permitir a minha pequenez ou a minha natureza. Este Menino é Filho de Deus, e ao mesmo tempo é soberana bondade, grandeza, virtude, verdade, sabedoria e suma divindade; e é Homem, bondade, grandeza e poder criados: dentre todas as coisas é o Ser mais alto de toda a natureza universal, por quem todas as coisas foram feitas; e, por isso, enquanto Ele as conserva, todas as coisas têm permanência. Esse mesmo Menino é Deus e Homem, e o que se atribui a um também ao outro é atribuído; e n'Ele há três naturezas, a saber, a do corpo, a racional da alma e a divina, a qual, irrompendo nela as outras duas, une-as numa só pessoa. Neste abençoado Menino se realiza a exaltação de todo o universo, porque o homem participa com todas as criaturas e Deus se faz homem. (3) Deus Pai urdiu este Filho seu de forma que com a sua morte redimisse a linhagem humana, e para que com todas as suas virtudes (que neste abençoado Menino atingem sempre o grau máximo) convertesse os homens e entre eles agisse. Quem, então, poderá louvar como deve ser o seu nascimento temporal? E o seu crescimento? Vós sois o Anjo do grande conselho, Vós sois o Deus forte, o Príncipe da paz, Pai do século futuro, cujo principado, pela vida neste mundo, carregais sobre os ombros. (4)

Tendo assim dito, calou-se, e falou Oração.

Capítulo IX: Da Oração

- Adoro - disse Oração - o Menino abençoado, Deus e homem, a sua divindade, a sua humanidade e todo o bem que há n'Ele, já que a Ele toda adoração, objetiva e finalmente, deve ser endereçada. Adoro n'Ele a soberana bondade, a soberana grandeza e todas as demais qualidades incriadas; e, sendo Ele homem, adoro também essas mesmas qualidades tal como foram criadas; e como todas as coisas foram feitas por Ele, adoro o seu entendimento, e a sua boa vontade adoro, e qualquer outra ação sua; e a Ele ofereço toda a minha inteligência, todo o meu poder e todo o meu agir, e, se mais pudesse, mais diria para a sua glória e a sua honra. Adoro o Menino que há de sofrer a paixão, há de ser sepultado e há de ressuscitar no terceiro dia, e com toda a glória d'Ele adoro também a bem-aventurada Virgem, sua sacratíssima Mãe.

Capítulo X: Da Caridade

Disse Caridade:

- Um menino nos é nascido, um filho se nos deu. (5) O Filho de Deus é caridade incriada, e eu sou caridade criada e serva sua. Que farei portanto por Ele? Todas as penas sofrerei de bom grado de forma que os homens o amem e que tudo queiram e façam por amor a Ele. Em si mesma, essa tarefa me é leve, embora seja pesada para os homens, que me mantêm negligenciada e ignorada, a mim e ao Nascido divino. Nasceu o Menino da bem-aventurada Virgem, com a caridade mais inflamada; concebeu-o do Espírito Santo, e o pariu sem dor, e com seus seios o amamenta. Os Anjos, Arcanjos, Principados e todas as fileiras da milícia celestial o amam, louvam e adoram, e todos os santos profetas ao mesmo tempo, e todos os apóstolos, e a generalidade de todos os santos, com caridade o louvaram perpetuamente na glória e o glorificaram, e com amor sem fim o contemplaram. Ele é caridade inefável, que excede todo entendimento. (6) Enquanto Homem, é menino, não é a caridade original, senão que dela participa; mas, enquanto Criador, não é possível encontrar caridade maior que aquela com a qual Ele ama a si mesmo (Deus e Homem) e todas as coisas criadas, com aquela infinita caridade que é Ele mesmo. Estas duas caridades neste Menino abençoado são tão grandes que todas as línguas e todo o entendimento dos anjos e dos homens não podem expressar a união que n'Ele encontram a grandeza a virtude.

Capítulo XI: Da Contrição

Contrição disse:

- Quando recordo como este Menino há de ser entendido, amado, louvado e reverenciado, e como na memória há de ser eternamente guardado, não sei o que dizer, atemorizada por excessivo pavor; e vivo em tanto temor da divina justiça, que dificilmente teria sensibilidade e movimento se não fosse pela misericórdia de Deus, na qual confio e tenho esperança. Quando considero a alteza deste Menino santíssimo, que está acima de qualquer coisa, e que, não obstante, fez-se homem, e quando pondero de que maneira negligenciei, ingrata, o seu culto e o seu serviço, tristeza e sofrimento me aliciam e afligem. Mais ainda, quando considero as soberanas riquezas e as honras incriadas e as supremas razões criadas deste Menino, que n'Ele estão todas reunidas; e, por outro lado, as blasfêmias, os perjúrios, as desonras, os vitupérios e todas as outras maldades sem nome feitas contra esta Criança, tanto as passadas como as presentes e as futuras, tanto mais padeço de tristeza e angústia e perturbação, tal como fui e sou assinalada para que os homens, com o coração contrito, arrependam-se dos pecados e esperem do Deus Menino misericórdia.

Capítulo XII: Da Confissão

Disse Confissão:

- Confesso que do Filho de Deus se fez mercê para todo o mundo, e que Ele o exaltou; pois sem este Menino, sempre santificado, o mundo não teria podido sair do nada e não poderia estar feito. Ele, enquanto homem, é parte do universo, e o eleva à ordem mais alta, subsistente no eterno suposto, e, como Homem e Deus, une os dois pontos mais distantes, isto é, o começo e o fim.

Mais ainda disse Confissão:

- Confesso que por razão da finalidade do Menino, o universo tem ordem e proporção, a saber: o céu é tão grande e móvel, e estrelado, e luminoso, e esférico, e denso. E assim Ele pode dizer-se fim dos anjos, e dos homens, e dos elementos, e de todas as coisas. De modo semelhante confesso que o mundo seria mais feio se o Filho de Deus não fosse homem. A justificativa disso é que, sendo as razões divinas infinitas em perfeição e em eficácia operativa, sempre poderiam tornar o mundo melhor e melhorá-lo cada vez mais; e isto não teria acabamento, coisa que repugna a ordem do universo. Mas, uma vez que neste Menino todas as criaturas inferiores têm alguma participação, como homem que é, sendo Ele Deus, o universo não poderia elevar-se mais do que unindo-se a criatura ao seu princípio criador. Confesso também que, se todas as coisas soberanas e inferiores pudessem falar em louvor do Menino, não conseguiriam louvá-lo como deve ser. A razão é esta: todas aquelas coisas são finitas, e a bondade do Menino é infinita, entre tais extremos não pode haver proporção nem medida.

Disse mais ainda Confissão:

- Ai, quanto me dói que ao Deus Menino não lhe seja servida tanta honra e reverência, como conviria à sua excelsitude soberana; em vez disso os homens ingratos deste mundo têm em opróbrio Aquele ao qual sempre cabe louvor, adoração, excelente amor e confissão. Vejam, então, Senhora Justiça e Senhora Misericórdia, o que, no que toca a este ponto, é preciso fazer, e o que há de ser dos prelados e dos príncipes ao governo dos quais o mundo é confiado, e que, ingratos, não confessam mais os benefícios do Menino santíssimo, nem neste ponto econhecem alguma vez haver errado, porque não têm nenhum cuidado pelo amor do Menino ou, se têm, é muito pouco.

Capítulo XIII: Da Satisfação

Satisfação disse:

- Deus é um ser eterno, infinito e perfeito em todas as suas razões. Disto se segue que Ele é digno de ser conhecido, amado, louvado e bendido pela criação. Deus, conhecendo que Ele é assim, e querendo satisfazer-se a si mesmo, dispôs o mundo para este fim previsto; o qual nunca teria podido atingir, se o divino Menino não o tivesse satisfeito. A tal fim, porém, tão alto e tão supremo, não basta por si mesma a proporção do universo, uma vez que aquele fim não tem limite. O Menino, porém, porque é Deus, é eterno e é infinito. Desta forma, a ordem divina, com este Menino, satisfez o universo, dispondo-o conforme as ordens da Criança, na qual uma e outra ordem, o eterno e o temporal, o limitado e o infinito, reluzem com claridade suprema.

E disse mais ainda Satisfação:

- O Menino, enquanto homem, quer satisfazer Deus Pai, porque neste mundo nada quer possuir dos bens terrenos; justo e humilde veio ao mundo, cheio de todas as virtudes, obediente, benigno, servo de Deus Pai, e por isso será pendurado no patíbulo da cruz, e será chagado e martirizado, e pelo amor do Pai sofrerá com alegria muitos outros opróbrios. E também Deus Pai quer satisfazer o Menino, pondo-o como fundamento da santa Igreja católica - uma vez que sobre a pedra, que é o Cristo menino, foi fundada a Igreja Católica - dando-lhe o império romano para defender a fiel comunhão de todos aqueles que em seu nome serão chamados cristãos, e para extirpar os outros reis e os outros tiranos. Portanto, agora, reis e príncipes, segundo está escrito, (7) compreendei; deixai-vos advertir, juízes da terra, porque nascido é o Menino do qual se escreveu toda aquela profecia. E dará também prelados e clérigos, entre os quais culminará o soberano pontífice vigário geral seu, para que se salve a unidade da fé. Bem que o Santo dos Santos, prometido desde os dias antigos e agora nascido menino filho de Deus, já se satisfaz com o dom de Deus Pai; vê nada menos que alguns prelados futuros que, abandonando-O, parece que comem ouro, e que nada da terra lhes basta, nem para eles nem para seu sangue maldito. A divina justiça, contudo, para a qual todas as coisas são nuas e evidentes, não poderá sustentá-los por muito tempo, no futuro; antes fará que se afundem nos eternos suplícios, dos quais lhe são devedores, pois tendo abandonado Jesus Cristo menino, não quiseram aprender a doutrina nem receber entendimento.

Capítulo XIV: As Damas louvam Menino Jesus

Depois que as ditas Damas terminaram suas respectivas falas, a Justiça e a Misericórdia permitiram que elas entrassem e adorassem o Recém-Nascido, aprovando a sua intenção e as palavras que tinham dito. E, vendo o Menino, as mesmas seis damas, ajoelhadas e com a cabeça inclinada, adoraram-no e cantaram cada uma um cântico.

Louvor, a primeira, disse:

- Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade. (8) Glória, louvor e honra sejam dadas para Ti, Cristo Rei Redentor, ao qual a inocente infância cantará o piedoso hosana. (9)

Oração disse:

- Adoro-te, oh Cristo Jesus, unigênito de Deus Pai, porque vieste a este mundo para redimi-lo.

Caridade cantou este cântico:

- A minha alma se derreteu assim que encontrei o meu Amado, por cujo amor sempre enlanguesci. (10) Bendito, então, é aquele que vem em nome do Senhor. (11)

Contrição disse assim:

- Tem piedade de mim, segundo a tua infinita misericórdia. (12)

Confissão exclamou:

- Confesso-te, Pai do Século futuro, Rei do céu e da terra, porque és Filho de Deus vivo que vieste a este mundo. (13)

E depois, Satisfação:

- Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito; (14) não assim como quero: faça-se sempre a tua vontade. (15)

Depois de tudo, a divina Bondade e todos os outros atributos eternos de Deus quiseram se fazer conhecer às ditas seis Damas.

Capítulo XV: Da Divina Bondade

Disse a Bondade divina:

- Sois aceitas por mim, fidelíssimas servas do meu santo Menino. Eu sou a Bondade singular e absoluta, entidade singular; e enquanto sou absoluta, sou essência simples; e uma vez que o absoluto não pode constituir-se com mais nada, sou intercambiável com o bem absoluto, que que gera na sua inteireza o bem absoluto engendrado, do qual e pelo qual o Espírito Santo é o Bem absoluto procedente. Digo absolutos naquilo que lhes é comum e essencial. Os supostos, contudo, são relativos e distintos segundo sua propriedade relativa. Porque estes mesmos supostos são absolutos em mim; mas é de um outro modo e por uma outra propriedade que sou o Pai que produz e, ainda de outro modo, o Filho produzido inefavelmente, e de um terceiro modo o Espírito resultante. E isto é necessário para que haja pessoas distintas que tenham entre elas referências mútuas; e para que haja propriedades singulares que constituam e distinguam o suposto ou pessoa; de outra forma eu não teria natureza absoluta, incluindo toda perfeição, se de mim mesma não pudesse produzir o Bem perfeito, ou não subsistisse indistinta nos três supostos: então eu seria estéril, infecunda e de todo alienada de minha natureza. Assim como vejo que do sol nasce o raio de luz, e de ambos (do raio e da luz) o calor, assim do Pai surge o Filho, e de ambos o Espírito Santo, que é o amor. E seria um exemplo em tudo e diretamente semelhante se o calor, o raio e a luz fossem intercambiáveis com a essência do sol, como se constituíssem uma só coisa. Mas não seria pertinente que na natureza criada se encontrasse alguma semelhança perfeita, havendo assim uma suprema, singular e misteriosa perfeição nas coisas divinas. Estando portanto em minha total perfeição, não necessitando de nada para o que quero fazer e não havendo para mim qualquer impedimento (pois não me impediria nada que fosse anterior a mim, porque algo assim não existe, nem que fosse posterior, pois que todo ser posterior participa do meu ser e é finito, enquanto Eu sou infinita, como a luz infinita, e aquilo, em comparação, é como uma pequena mancha colorida, perceptível na minha infinidade), profanos são aqueles que, sendo Eu una, negam que seja trina, subsistindo em três diferentes e distintas pessoas, que entre si mantêm relações mútuas.

Disse mais ainda a divina Bondade:

- Em mim mesma quero produzir um efeito bom e singular, que seja causa de toda a ordem do universo, que pelo oráculo dos profetas declarei que viria, e já é vindo, e é aquele singular efeito prometido, isto é: este Menino que por essência é bom, participa da bondade e, por esta razão, é fácil de conhecer, porque, sendo Filho de Deus, fez-se homem; e não o pôde impedir o poder de ninguém; porque não é mais forte que eu nenhuma entidade do universo. Ordenei que fosse adorado por todos os anjos, e toda criatura fiel e que me conheça se alegrou. Eu, com este Menino, visito o mundo; e com toda a minha integridade a Ele me sou entregue. Compadeço-me de todos; a todo aquele que está impedido dou saída; tiro da prisão os encarcerados, de modo que toda coisa no mundo criado possa repousar. A Misericórdia e a Verdade estão com o Menino desde o berço: A Justiça e a Paz o beijam, (16) de forma que ao mundo apareçam a sua benignidade, (17) a justiça, a misericórdia, a paz e a tranqüilidade.

E seguiu dizendo a divina Bondade:

- Assim como é justo que eu compreenda em mim toda a bondade do universo, é eqüitativo que a eternidade divina contenha nela mesma a novidade de todas as coisas, ficando ela, porém, sempre absoluta e sem mudança. Porque, tal como eu sou bondade absoluta, com faculdade de produzir outras bondades, da mesma maneira a eternidade, contendo nela mesma tudo aquilo que é feito de modo novo, pode ser causa da mudança e do tempo. Por esta razão não hão de ser escutados aqueles que afirmam que o mundo necessariamente existe desde a eternidade. (18)

E ainda disse mais a divina Bondade:

- Merecedora sou de ser conhecida e para sempre louvada e amada. Aquilo que me é digno e justo não pode faltar-me; portanto, não posso ser conhecida e louvada plenamente senão no paraíso; assim, horrivelmente blasfemam aqueles que negam a existência do paraíso, onde eu sou conhecida, louvada e eternamente glorificada. Porque ninguém pode impedir aquilo por mim mesma faço para honra e glória minha. (19)

Isto disse a Divina Bondade.

Capítulo XVI: Da Grandeza de Deus

Depois desta, falou a Grandeza de Deus:

- Eu sou - disse - de uma essência tão excelente e grandiosa, que não tenho medida, nem termo, nem fim. Não existe ente possível acima do meu, e tudo o mais que está abaixo, necessariamente de mim tomou o seu ser. Tomá-lo de mim é bom por si mesmo, tal como a própria bondade, que é absoluta, em mim tem a sua fruição essencial, por sermos ambas uma só e mesma coisa. Por esta razão não pode me impedir nem o mal nem qualquer outra coisa que esteja mais abaixo do mal, uma vez que a minha essência o excede e ultrapassa imensamente, infinitamente. Tendo isso em conta, não seria correto o critério de quem julga que Eu não sou simplesmente imensa, a não ser somente em razão da duração, como se não fosse mais uma grandeza eterna; porque de qualquer modo não é possível que uma outra coisa me ponha fim, limite ou termo quanto ao grau de entidade, bondade, poder, verdade ou virtude. Antes, sendo simplesmente absoluta, não obrigada, não coagida, posso criar, agir, mover e dispor da maneira que queira, seja através do céu, seja sem qualquer intermédio, com ou sem quaisquer outras causas segundas, às quais Eu comunico a virtude de ser concausa. E assim como o pensamento [mens] sempre pode inventar [effingere: representar, retratar, reproduzir, figurar] um novo nome [numerum: número, medida, quantidade, classe, ordem, consideração, partes de um todo, coorte, legião, compasso, cadência, ritmo, verso], muito mais posso Eu acrescentar uma nova espécie ao universo. E como todas as razões atribuídas à divindade são mútua e reciprocamente conversíveis (a bondade, por exemplo, é eternidade, e eternidade é bondade, e isto mesmo pode predicar-se da unidade, da potestade, da virtude, da verdade etc., porque todas existem na infinita e simples essência, e Eu mesma sou também divindade), corretamente se deduz que a minha essência simples, absoluta e imensa não pode ser incluída no limite de nenhum lugar, como tampouco pode ser a eternidade incluída no tempo; e como sou tão grande, quis fazer no mundo uma obra máxima: comunicar-me toda a este Menino, e estar n'Ele compreendida [ab eoque comprehendi]; todavia, como sou incompreensível, o mundo compreende o Menino e ao mesmo tempo não o compreende, sendo Ele de uma só vez Deus e Homem. E os que assim não se conduzem, mais e mais não poderão compreendê-lo, se não elevam e alçam o entendimento à consideração do Menino Jesus, prometido ao mundo para a sua salvação. E esta é obra de virtude não finda, mas imensa e infinita. Porque, se meu entendimento entendesse que Eu era finita e que finitamente agia, necessariamente isto mesmo a vontade quereria, e detestaria o contrário, pois a vontade segue o juízo do entendimento. Contudo é uma idéia tola e débil que Eu seja finita e que só atue finitamente. E como é possível que a vontade queira isto, e não, ao contrário, o que é atraído [v. p. 46, var. 386/390] simples e extremamente, e que em mim não haja mais que a perfeição de uma grandeza transferida? Portanto o meu Ser está acima de tudo o que é finito, acima de tudo o que tem termo, acima de qualquer grau de grandeza. Manifesta-se, assim, que nada, nem grande nem pequeno, nunca pôde impedir a minha ação sobre o Menino abençoado, tal como a minha imensidade abraça e contém tudo o que está na natureza, tudo o que por toda parte pode encontrar-se na mesma natureza. E aqueles que o contrário afirmam não terão no céu parte com esse Menino.

Isto disse a Grandeza divina.

Capítulo XVII: Da Eternidade divina

Acrescentou a divina Eternidade:

- Eu sou a duração sem fim, do eterno até o eterno, ao mesmo tempo verdade do tempo com eminência e essência pura, sublime e perfeita, de modo que em mim não é possível nenhum acréscimo, nem há fora de mim coisa alguma que possa obstaculizar minha ação. Porque, sendo absoluta em eternidade, sou absolutamente boa, absolutamente grande, onipotente, verdadeira, não passível de impedimento. Por isso me comprazo em mostrar ao mundo este Menino, temporal e eterno, mortal e imortal. Homem e Deus, fim de todas as coisas, cuja ação não pode ser impedida, existente comigo desde o princípio, antes de tudo o mais. Pois todas as causas segundas foram dispostas por mim conforme o que me agradou. E Ele compôs comigo toda a criação. Por este motivo não me conhecem aqueles que proclamam que o mundo necessariamente é eterno porque em mim não há novidade, nem mudança no meu agir. Desde a eternidade está expresso em mim o arquétipo do mundo: o Verbo consubstancial, imanente ao pensamento fecundo, do qual, no momento em que satisfiz a eterna sabedoria, provieram todas as coisas, e continuam a provir a cada dia. Agora nasceu no mundo de forma que todas as coisas que foram n'Ele formadas, n'Ele repousem, eminentemente reformadas. Que pouco me conheciam e que pouco conheciam a minha fecundidade, aqueles que pensam que o mundo deva necessariamente ser eterno, de modo que Eu, cansada de nada fazer, inútil e vazia, estivesse entorpecida desde a eternidade. Exatamente como aquele que pensava que o caminhar e o movimento do corpo fossem a principal operação da alma para que ela não caísse em torpor. Porque eu, em mim mesma, não sou infecunda, antes uma mente eterna que produz a cada momento o íntimo Verbo eterno, comigo relacionado como verdadeiro filho com seu verdadeiro Pai, dos quais procede um terceiro suposto eterno, subsistente por ele mesmo; em cujas Pessoas Eu sou princípio, meio, fim e complemento. E vem daí que, em toda coisa, a perfeição, a consumação e o complemento consiste em três pontos. Assim é que, havendo em mim uma tão íntima, tão imensa e tão perfeita emanação, ação e progressão, para nada necessito de qualquer ação externa, como se jazesse em torpor, como se não estivesse sempre atuando. No entanto, quando quero e da maneira que quero, pela exuberância da minha fecundidade, me espalho para fora de mim mesma, e segundo a capacidade dos seres me comunico, porém nunca deixando a atividade íntima, porque não há nenhuma coisa exterior que possa receber integralmente meu vigor. E por isto, torno a dizer, sem a operação íntima da minha imensa fecundidade, seria Eu como aquele que obra de uma maneira enervada e enlanguescida. Pois Eu e o intelecto divino essencialmente somos uma e a mesma coisa; de onde advém que tudo aquilo que há em um por razão da essência, por força se há de achar semelhantemente no outro; porque tudo aquilo pertence a um ser que é um mesmo por razão da essência única, de modo que entre eles é impossível que haja diferença. E como o entendimento, que é inteligente por essência, continha em si mesmo o entender e aquilo que se entende, logo também Eu entendo em meu interior o eternizante, o eternizar e o eternizado; de outro modo não seria essencial a identidade entre Eu e o intelecto, e conseqüentemente o intelecto essencialmente supremo não seria essencialmente eterno, nem Eu seria essencialmente entendida, nem a minha essência o seria intrinsecamente. Professar esta crença seria opinião profana e impia. E assim como aqueles três referidos são entre eles realmente distintos no entendimento, ainda que sejam inteiramente o mesmo na essência absoluta; assim também em mim são diferentes por relação e por um existir mesmo em essência. E o mesmo poderíamos dizer de qualquer dignidade divina.

A Eternidade disse ainda:

- Eu sou dignidade singular, bondade grande e suprema, à qual repugna que haja coisa exterior que lhe seja igual, de modo que se salve a minha singular unidade. Daí decorre que de falsas premissas retiram argumentos aqueles que igualam a duração do mundo com a minha; porque assim como a minha bondade é singular e não tem igual, assim é também necessário que seja singular a eternidade, de modo que se serve a singularidade de todas as dignidades, as quais se identificam com a divindade. E aqueles que afirmarem o contrário deste Menino, fim de todo o universo, nunca alcançarão repouso, antes a minha justiça, que é a minha companheira e uma mesma coisa comigo, os exterminará por rebeldes à sabedoria divina.

Capítulo XVIII: Da Divina Potestade

Em seguida disse a Potestade divino:

- Eu sou o que sou por mim, e não por outro; entidade singular em mim e por mim mesma; um só Deus, não contingente, porque sou sumamente necessária; não sou possível porque não sou condicionada nem passível de impedimento por nenhuma outra potência; eterna em mim mesma, e sempre Ente, ato puro, e por isto nenhum outro agente pode reduzir ou minorar a minha potestade; antes toda outra causa, comparada com a minha potestade, é como o machado na mão do carpinteiro: um instrumento de trabalho. Em mim está a ordem de origem necessária e intrínseca, da qual toda outra deriva.

E ainda disse mais:

- Eu sou a potestade absoluta, de mim e para mim mesma simplesmemte ordenada; Eu concedo exteriormente o ser, enquanto que o efeito é produzido para participar e receber o meu ser. Não sabem o que é piedade aqueles que por isto assinalam limite e termo à minha virtude, de modo que não produza o infinito. Mas em mim mesma produzo o infinito, sendo simplíssima e de perfeição sumamente infinita a minha absoluta virtude; fora de mim, em troca, não produzo tal coisa, e não por impotência minha, senão porque isto repugna ao efeito: como poderia haver fora de mim um outro ser infinito, um outro bem infinito, uma outra verdade infinita, um outro poder infinito e uma outra imensidão infinita? Sem contar que isto seria contrário à minha singularidade. Por esta razão, tudo isto criado, porque criado, é forçoso que tenha fim e termo: contudo Eu, na ordem suprema e por sobre qualquer ordem, sou absoluta em potência e essência, sou simplesmente infinita. E este meu Menino, finito e infinito, restrito e absoluto, criado e incriado, enquanto é criado, é finito; e, não menos, está todo em mim, porque é Deus, por quem são feitas todas as coisas, e é homem em Deus; e Eu sou Deus, do qual provêm todas as coisas; e Eu e Ele somos um mesmo Deus e uma só singular potestade. Portanto, sobre qualquer coisa escutai-o como a mim. Além de que, sendo Eu a virtude absoluta e a infinita entidade, posso criar simplesmente fora de mim aquilo que nem é ato, nem potência na natureza; e isto por mim mesmo, sem intermediário, sem nenhuma disposição prévia. De mais a mais, porque sou potestade simplesmente absoluta, Eu sou o criador dos anjos, da alma, do céu e de tudo aquilo que se move, e posso unir o novo e o antigo sempre que me aprouver, e também aumentar o número dos seres criados. Igualmente, como sou por mim mesma suficientíssima, e absoluta por essência, posso subsistir sem anjos, sem o universo, sem alma e sem nenhum objeto exterior, de modo que estas criaturas estão de mim a uma distância infinita, e o meu ser e o meu agir as vencem e superam imensamente. Que pode então impedir o meu querer e o meu poder? Não obstante, Eu os salvo e os conservo desde a eternidade, porque sou potestade não passível de impedimento, sumamente boa, que livremente me propago e me comunico.

E disse mais ainda a divina Potestade:

- Como em mim se acha toda perfeição, virtude e operação, posso sustentar sobre um eterno suposto a natureza humana, coisa que sobreveio com o Menino meu, no qual não esteve assumido um suposto ou uma pessoa humana, senão uma natureza de homem. E em toda a ordem da criação, de alto a baixo, não há nada que seja bom que Eu não tenha feito; e até aquelas coisas que para a natureza são impossíveis, por mim são feitas sem dificuldade. Por isto não podem ser nomeados sábios filósofos, senão impiedosos e sofistas, aqueles que neguem a encarnação do Verbo de Deus, persuadidos de que isso não é possível; nem aqueles que tampouco não crêem que os demônios foram criados espíritos bons e que por impulso próprio, sem mim, resvalaram na malícia; nem os que pensam que os homens não viverão por toda a eternidade, desconhecem que a minha misericórdia é absoluta e onipotente, e se neste mundo não concede a recompensa, é que a reserva para a outra vida, que não terá fim: contudo, como a minha misericórdia é também muito justa, eles, no século futuro, experimentarão a minha justiça punitiva. Se eles não podem encerrar o céu nas suas mãos, tampouco a potestade de sua natureza pode encerrar a minha potestade. Por que então, sem juízo, deliram, crendo que - só pelo fato de que uma donzela não possa parir sem lesão da virgindade apenas com o poder natural - uma donzela santa, sendo virgem, não pôde dar a luz ao meu Cristo, que os meus santos profetas prometeram que seria nascido de uma virgem? A virtude natural não é mais que uma serva humilde da minha potência, porém, a minha virtude é a suprema potestade, que tem feito muito facilmente o inacessível à natureza. Quis que uma virgem parisse: a natureza, humilde serva minha, não disputando comigo sobre a possibilidade, obedeceu, e, perturbadas as leis naturais, me pari um Menino, o qual, enquanto homem, há de se inscrever na linhagem dos outros homens, embora tenha vindo ao mundo de modo diferente dos outros homens; porém, enquanto engendrado por mim antes dos séculos, é diferente de toda espécie humana, e sobre todas as outras coisas elevado. Negam, ainda, que as almas, separadas dos seus corpos, subsistiriam, porque a mim não me conhecem, que muito freqüentemente, uma vez separadas, as restituí aos próprios corpos, de modo que os homens adquirissem entendimento e conhecessem o meu poder. E o meu Filho pequeno, mal chegado ao mundo, ressuscitará dentre os outros diante dos olhos de seus inimigos. Eu, Potestade suprema, sou amante dos homens; e num Homem só, pequeno e imenso, que é o meu Verbo, os amo a todos, e aceito por filhos adotivos aqueles que hão de acreditar nele. Oxalá que os homens assim o entendessem, não desconfiassem da sua imortalidade, que eu lhes concedi, e antes, como seria prudente, me louvassem e me agradecessem. Eu sou ato, e as formas das coisas são atos, e dependem sem incomparavelmente mais de mim que das leis da matéria. E quanto mais simples e espirituais as formas, menos elas são escravas da matéria grosseira e temporal; e isto, pelo minha imutável ordenação. Por este motivo os espíritos e as inteligências celestiais estão sempre livres de tais vínculos. As almas racionais (que são as formas mais simples e espirituais depois daquelas outras, celestiais e supramundanas), em troca, ora estão unidas à matéria, ora são livres. E as formas dos seres inferiores aos homens estão sempre unidas à matéria e dela nunca se vêem livres, porque são grosseiras, compostas e suscetíveis, e nada têm de espiritual que possa elevar-se até me conhecer. Por que dizem, então, que nenhum ato pode subsistir sem a sua própria conseqüência, impiamente desconfiados da sua imortalidade? Sendo assim, miseráveis como não se pode dizer, serão obrigados a ver com castigos e tormentos o que agora negam e recusam. E é de se admirar que não se persuadam mais, haja vista o que eu lhes sugeri pelo oráculo dos meus profetas, que são os homens mais santos do mundo. De tanto verem que a matéria (escória do mundo e a coisa de maior menosprezo) imitou a minha eternidade, creram que era minha coetânea, e coeterna, e inclusive o primeiro Ser sempiterno; contudo desconhecem que nunca houve um Ser eterno. Por quê, então, só pelo fato de os corpos estarem formados por elementos que são contrários entre si, afirmam - contra o que eu declarei - que não haverá ressurreição, como se a freqüente dissolução dos corpos importasse? Porventura a minha potestade, no reino da paz, não pode suspender aquela guerra dos elementos contrários? A paz que se conhece, mesmo nesta turbulenta região, é o fim da guerra. No fim, todas as coisas repousam, e nele não é preciso entender coisa que seja desordenada, pois que toda a ordem aí se encaminha. Não me é difícil, na ressurreição, atribuir aos espíritos e aos corpos aquela mesma plenitude incorpórea que agora atribuo à luz e a outras coisas. Por que consideram impossível que permaneça a mesma, com a força do meu poder (a qual é imensa para produzir qualquer coisa sem tempo nem movimento), se a alma permanece, se permanece também a matéria malgrado a sua fluidez? Não me parece nem um pouco difícil (ao menos para mim, que posso tudo) reunir o corpo e a alma num átimo. Acaso podem os homens, quanto à água antes recolhida, mas depois espargida e difundida em gotas inumeráveis, reuni-la mais uma vez, de modo a restar numericamente a mesma? Portanto a minha potestade seria bem débil, se não pudesse congregar e reunir as almas e os corpos que antes separei. Direi mais: os fiéis que crêem no meu Cristo prometido, Menino justo nascido para a salvação do mundo, serão ressuscitados por Ele sem dúvida alguma, no último dia do mundo, para a vida eterna; em troca, os que não creram, com castigos eternos sentirão todo o peso do meu poder, juntamente com seus corpos, obrigados a aceitar o meu juízo sem libertadora misericórdia. Quem me pode resistir? - disse a Potestade divina. Enviei o meu Filho à terra, de modo que os homens consigam a vida que não terá fim, se forem piedosos e santos, como o meu Filho é piedoso e santo. Aqueles que seguirão para os castigos eternos se desviarão do caminho e serão punidos contra o meu querer. No meu querer (Eu que vou entregar o meu Filho, pelo amor dos homens) antes se encontra a vida que a morte.

Assim disse a Potestade divina.

Capítulo XIX: Da Sabedoria ou Entendimento Divino

Em seguida, o divino Entendimento disse:

- Eu sou absoluto, e absolutos são o meu objeto e o meu entender. Porque Eu não seria inteligente absoluto se o meu entender, entendimento e inteligível não fossem absolutos. E não seria Eu absoluto inteligente, inteligível e entender se não fosse absolutamente três supostos distintos, e três pessoas com mútuas relações; pois com qualquer um deles sou o mesmo, com essência única e indivisa. Sou simples, não composta, senão absolutamente acima de todo vínculo de potência e de todo nexo material. Vejo claramente o passado, o presente e o futuro, e todo o possível ao qual a minha virtude pode se estender. E absoluto é o meu nome: O que sou; a saber: o Deus único. Há em mim toda claridade, potência, bondade para tudo prever e desfrutar. Como dizem, então, que Eu não compreendo todas as espécies, nem todos os indivíduos, nem todos os materiais do universo? Porque, sendo Eu inteligência simples, absoluta e infinita, tão potente quanto inteligente, compreendo imaterialmente todas estas coisas em mim mesma, no Verbo único, este que agora nasceu segundo a carne, para que toda carne se salve. Pois a minha virtude e o meu entender pode estender-se até isto que é nada, nem em ato nem na potência da natureza. Sou grande, poderoso e bondade infinita, e quero que, entre os homens, antes me louvem e entendam muitos entendimentos que um só. Por isto entendo - disse o Entendimento - que, assim como sou absoluto, mediante o entender sou o ordenador absoluto, intrínseca e extrinsecamente: intrinsecamente, porque sou trino (inteligente, inteligível e entender); extrinsecamente, porque ordeno todas as coisas inteligíveis e naturais (as naturais, pelos seres inteligentes; as inteligíveis, por mim mesmo). Aqueles divergentes de mim, (20) admitem um entendimento agente não inteligente (porque não tem em si mesmo a intelecção) e um entendimento possível inteligente, e não sabem que na minha fecundidade há três supostos que neles mesmos subsistem. E se suspeitam disto partindo do entendimento humano, por número querem entender numeralmente a unidade, sendo assim que o que é preciso é centrar-se na unidade, e da unidade passar ao número, numeralmente; pois entre o entendimento humano e eu, que sou simples e absoluto, há uma grande diferença e dessemelhança. Não admira então que, dispersos entre todas as coisas dispersas, deslizem em vários erros, servindo-se tortuosa e perversamente, e não certa e ordenadamente, de uma filosofia que Eu lhes outorguei com finalidade ordenada e certa?

E ainda disse mais o Entendimento:

- Entre mim e a primeira inteligência que vem depois de mim não existe diferença por contrariedade, senão tal grau de diversidade que ultrapassa infinitamente a sua natureza. Igualmente, existe aí inteligência e ordem, pois que por mim é, e a mim se refere. Se, onde há conveniência e ordem, é preciso que haja uma inteligência que as ordene, então Eu serei a sua causa final, eficiente e ativa. Os iludidos que pensam o contrário não sabem o que é a ordem.

E mais ainda disse o Entendimento divino:

- Eu, sendo absoluto, entendo imediatamente todas as coisas, e o faço como satisfaz à minha vontade. É bem verdade que, assim como a unidade primeira, com a segunda, causa uma terceira unidade, Eu freqüentemente na natureza faço sucessivamente uma coisa mediante uma outra, comunicando a elas a semelhança de minha potência ativa. Não estão, portanto, suficientemente instruídos das coisas de Deus os que dizem que eu não entendo imediatamente todas as coisas, porque não as faço todas imediatamente; pois não estavam presentes quando de mim saiu o universo sem mediação de outros, e agora parece que surgem pela mediação de outros. Se fossem instruídos como deve ser, saberiam que eu posso entendê-lo e fazê-lo todo sem mediação de outrem, mas que também pela comunicação da minha bondade, e exatamente como o dispus desde a eternidade, ordeno e disponho por mediação de outrem o primeiro nascimento das coisas que irão saindo uma depois da outra.

E ainda disse mais o Entendimento:

- Eu sou absolutamente poderoso e inteligente, e poderoso me entendo acima de todo o curso da natureza, porque nem o possível nem o impossível naturalmente em nada podem me impedir, de forma que sou de uma ordem e natureza superior. Em verdade, não posso agir mal, com falsidade ou vício, porque sou a bondade, a virtude e a verdade absoluta, e esmorecer da minha bondade ou verdade seria decair da minha natureza. Nem posso conceber que Eu possa enredar-me em contradição, ou seja, que possa fazer que o que é bom seja ruim, nem que o que é verdadeiro seja falso, ou ao contrário, porque estas coisas não são inteligíveis para nenhum entendimento. Logo, não serei considerado impotente, já que não posso fazer coisas contraditórias: isto não seria agir, senão deixar de agir. Por que, neste caso, que faria? Alguma coisa que seria e não seria. Por isto o meu Filho nasceu para vós no mundo, de modo que os que não vêem vejam, e os que não entendem entendam a bondade, a grandeza, a eternidade, a potestade, a sabedoria. Vinde a Ele os que estejam faltos de bondade, e o agradem; vinde os que são pequenos, e adquiri grandeza; vinde os que são temporais e adquiri vida eterna: vinde os febris e os doentes, e recebei força, vigor e potência: vinde os que não têm juízo, e recebei a sabedoria divina, não a do céu, do Menino no qual tenho morada desde toda a eternidade.

Depois de ter dito isto de si mesmo, o Entendimento divino calou.

Capítulo XX: Da Divina Vontade

Em seguida disse a Vontade divina:

- Eu sou a Vontade singular e absoluta; não condicionada, porque sou o que sou em mim e por mim; sou o que quero e não há ser mais absoluto que Eu que possa me impedir; assim é que sou libérrima em agir. E como sou vontade absoluta, Eu mesma sou absoluta bondade, grandeza, eternidade, potestade e entendimento; virtude, verdade e perfeição; glória, justiça, misericórdia e os outros atributos comuns da divindade. E como sou absoluta, tenho supostos relativos quanto a mim, e distintos eles entre si, nos quais sou absoluta; porque a minha condição de absoluta é infinita, porque se assim não fosse não seria absoluto o querendo, o querer e o querido: coisa que me faria estar ociosa e repugnaria à verdade.

Porém disse a Vontade:

- Sou absoluta, inclinada a amar, como o entendimento a entender, e quero ter três supostos reciprocamente amoráveis, sem os quais eu não seria absoluta, pois quero ter em mim o amante, o amado e o amor; e engendrar o amado (21) com toda a imensidão de bondade, grandeza, eternidade e potestade, e que de ambos provenha o amor. Uma mesma coisa são o querendo, o querido e o querer; tenho então o que quero, porque quero ser absoluta nos três supostos, coeternos e co-idênticos. Quis, igualmente, e desde a eternidade o dispus, que só houvesse um universo, e que a ordem e proporção de tudo quanto nele há, se salvasse, e fosse no seu gênero perfeitíssimo. Quis que uma pessoa da minha natureza se unisse no suposto, e é o Menino que procurei, Jesus Cristo, Homem e Deus. E isto pude pela virtude que sou Eu, simples, inenarrável, infinita e aperfeiçoadora. Longe estão de mim aqueles que com teimosia sustentam que o Filho de Deus não pode encarnar-se: Eu testifiquei e testifico ainda, que sou presente (22) no meu Filho, como já disse a Moisés e aos profetas. E a mim aprouve que o mundo não fosse eterno, senão criado há pouco, e que nascesse inteiramente novo para demonstrar a minha maior virtude e potência. Não há mudança em mim, porque desde a eternidade quis que em tal determinado momento e no tempo prescrito cada coisa recebesse o seu ser, segundo a sua capacidade para ser: ou duradoura, ou fluida e transitória.

De mais a mais disse:

- Haja vista que Eu sou o meu querer absoluto, desde a eternidade tomei um ato positivo; e existindo este ato simples e único, que os compreende todos e cada um deles, nunca em mim houve ato negativo ou privativo senão por camparação com a criatura exterior, que entende imperfeitamente.

E finalmente a Vontade disse:

- Assim como nos homens não há um intelecto único, assim tampouco há em todos uma vontade única; e prefiro ser entendida por muitos entendimentos humanos que só por um, pois a força de uma mônada ou unidade mais se manifesta para muitos números que só para um; e mais me satisfaz ser amada por muitas vontades que por uma só. Quis unir um entendimento humano e uma vontade humana ao entendimento e vontade divinos, de modo que a sua sabedoria fosse exemplar, espelho de toda sabedoria humana e angélica, e o amor seu, espelho e exemplo de todos os amores celestiais e terrenais. Jamais me teria unido com quem não tivesse celestial inteligência, como a tem este Menino pequeno, descendente de Abraão, Cristo, senhor de todas as coisas, celestiais, terrenais e infernais. (23)

Capítulo XXI: Da Virtude Divina

Disse a Virtude divina:

- Infinita sou, essência simples, poderosa, possível por mim e de mim; nada existe que impeça a minha ação infinita em bondade e grandeza. Absoluta sou, eterna, necessária, tal como assim o exige a minha simples e infinita perfeição, para que seja ampla em todos os atributos divinos, em todas as razões eternas e sempiternas dignidades. Logo, a divina eternidade é por si mesma necessária bondade e virtude, e sua mútua predicação é essencial, não como homem e risível, sujeito e paixão, se predicam deles mesmos.

E ainda disse:

- Como sou virtude infinita e absoluta, não sou ociosa, senão fecunda, tendo de toda a minha essência e virtude um Engendrado e um Pai, com cada um dos quais sou uma mesma coisa, cada um dos quais me quer compreender toda, e para além dos quais não me posso estender; por isso sou trindade infinita.

Depois, a divina Virtude acrescentou:

- Assim como sou infinita agindo interiormente, também o seria produzindo exteriormente se a infinidade não repugnasse totalmente à criatura. Igualmente, produzi um efeito nobilíssimo, o pequeno Recém-Nascido que veio. Quis que um eterno suposto o sustente em si mesmo, quanto à natureza humana. Vinde a Ele os que são surdos, e os restituirá a audição; vinde os cegos, e os devolverá a visão; vinde os doentes, os fracos, os coxos e os aleijados, e Ele vos curará, pois Eu sou a virtude onipotente, n'Ele tenho a minha morada e Ele a tem em mim. A todas as coisas dou solidez e saúde, e como Eu, também Ele por semelhante modo.

Capítulo XXII: Da Divina Verdade

Depois disto, disse a Verdade divina:

- Eu sou simplesmente a primeira, necessária por mim e de mim, e disto infinitamente da falsidade: o falso não é possível em mim, nem é possível qualquer coisa que possa contra mim, pois que sou absoluta, necessária, e verdade primeva; assim é necessário que seja verdadeiro tudo aquilo que é em mim; e assim na bondade divina e na grandeza e nas restantes dignidades, porque em todas elas sou necessária e fundamental, como em mim mesma, tal como sou a mesma necessidade, essência e princípio, bondade simples e grandeza indivisível. De tal coisa se se gue que sou a verdade essencial nas coisas divinas; de maneira que, assim como a potestade de Deus é infinita em duração, assim o é também em verdade; de outro modo, a divina potestade seria mais una com a eternidade do que com a verdade, o que é falso e impossível. Mesmo assim digo: é preciso necessariamente que isto seja verdade, para que assim a mesma potestade seja infinita na ação da verdade como o é na duração, a fim de que lhe pertença por si mesma a infinitude da ação e do poder; como acontece com a eterna duração, assim também com a verdade; e o mesmo que demonstrei de mim e da eternidade, é preciso afirmar a respeito da bondade e das restantes dignidades divinas: de outro modo, Eu seria, por mim mesma, mais verdade do que a potestade é, por si mesma, potestade; e isto não pode ser, pois tal como a potestade é absoluta, eu também o sou exatamente enquanto verdade absoluta. Por esta razão, Eu, verdade, não estou com aqueles que asseguram que a potestade não é infinita em poder, senão tão só em duração.

E disse mais ainda a Verdade:

- Assim como no entendimento e na vontade se dispõem diferentes correlatos (porque são primeiros, necessários e absolutos), do mesmo modo eu também os possuo em mim, porque sou primeira, necessária e absoluta. E o mesmo que digo de mim, pode ser dito sobre a bondade e as outras dignidades, porque todas somos uma essência primeira, verdadeira, e por si mesma necessária e indivisa.

Além disso, também disse a Verdade:

- No entendimento divino estão o inteligente, o inteligível, o entender; da mesma forma é preciso que em mim aconteça o mesmo verdadeira, primitiva e necessariamente, de modo que o meu ato seja puro, primeiro e necessário. Porém eu não o posso fazer senão com a distinção de seus correlatos, de modo que cada um deles seja uma pessoa própria, e todos três uma só essência, um só intelecto, uma só natureza, uma só unidade, bondade, grandeza e eternidade, uma só potestade, uma virtude e uma verdade.

Disse mais ainda a Verdade:

- É verdade (e necessário) que em todas as razões divinas primárias não há senão três supostos relativos ou divinas pessoas, de tal modo que todas são ao mesmo tempo, e cada uma delas é simultaneamente uma essência e natureza: de outra forma haveria uma multiplicação e confusão infinitas, e se perderia a singularidade ou a propriedade de cada relativo; porque a sua singularidade é a sua propriedade, a qual não poderia permanecer distinta, porque teria muitas semelhanças de que não se poderia distinguir, haja vista que a distinção necessariamente se dá entre opostos. Portanto, ou a distinção se confundiria, ou pela mesma razão se introduziria uma vaga e infinita multiplicação; daí a necessidade de dispôr três correlatos e não mais. E ainda mais, é conveniente - disse a Verdade - que, pela bela visão do universo, haja realmente uma verdade criada, que domine todas as verdades e os seres criados, e que seja a máxima verdade possível: tal verdade é Jesus Cristo, o meu Filho, nascido pequeno para destruir com a sua humildade as grandes falsidades do mundo, de modo que, a todos apascentando na verdade, os conduza às eternas pastagens. Ele é o caminho, a verdade e a vida, e sem Ele não seria o universo perfeito. Aqueles que, iludidos pelas falsidades de seus erros, não irão segui-lo e escoltá-lo, lançados a pavorosas trevas exteriores e a morte perpétua (Eu, que sou a verdade, antecipadamente lhes anuncio), o epsiarão com suplícios eternos; e, pelo contrário, aqueles que o seguirão, em perpétuo regozijo e júbilo conhecerão que a vida indeficiente e sempiterna é companheira da verdade.

Capítulo XXIII: Da Glória de Deus

A Glória divina assim falou:

Eu sou a Glória máxima, tal como sou de mim, por mim e por causa de mim, e não de outra ou por outra razão; do que se segue que não é possível uma glória maior que a minha. Mas eu, e a minha grandeza, e a imensidade da minha grandeza, sou o mesmo. A necessária conseqüência é que sou infinita; de outra forma, existiria uma glória maior que poderia ser-me obstáculo, e também Eu não seria infinita, o que é impossível. Sou então a glória máxima, o gáudio maior e o maior deleite que algum entendimento humano possa conceber, e da qual jorra todo deleite e gáudio. Por outro lado, não seria Eu glória infinita se a minha potestade fosse maior pela duração que pela minha glorificação; pois então a eternidae seria maior que Eu, coisa não possível de nenhum modo. Sou o mesmo, e uma não excede a outra, porque ambas são absolutas e simples por natureza, e infinitas; e é a mesma imensidade minha igual à sua, e mais além de tal magnitude ou maximidade não pode haver nenhuma outra infinidade; porque ou seria maior que a minha imensidade ou maximidade, o que é impossível; ou seria igual, coisa que não consente a minha singularidade; ou seria menor, e em tal caso já não haveria infinitude. Sou então a infinita e única glória, e conseqüentemente a absoluta bondade, a singular imensidade e eternidade, e todas as outras dignidades absolutas, que constituem uma mesma essência. De mais a mais, Eu não seria glória infinita se não fosse equipotente à divina bondade, grandeza e eternidade, e se estas não tivessem em mim e por mim a glorificação infinita; a qual não poderiam ter se em mim não houvesse três supostos, um do outro diferente, assim como são eles mesmos (enquanto é agora um glorificante infinito, que produza de todo ele e de toda a sua natureza um glorificado infinito engendrado, e que de ambos decorra o infinito glorificar animado) e se todos três, e não mais, não fossem toda a minha essência, substância e natureza. Se assim não fosse, introduzir-se-ia confusão, a unidade perder-se-ia, e também a infinidade e a glorificação; coisa que é impossível. Torno a dizer que sou a glória infinita; e é bastante digno que a minha infinita glória seja conhecida e amada; e isto é e será por este pequeno Menino, o meu Cristo, nascido da Virgem Maria, o qual conhece perfeitissimamente a minha glorificação infinita que tenho em mim e em todas as minhas dignidades. Isto é digno e justo, porque por nenhuma glorificação maior poder-se-ia ver exteriormente a minha máxima glória interior.

Disse além do mais a Glória divina:

- Eu sou substância espiritual, não sensível ou imaginável, de forma que as potências inferiores não podem intuir um objeto tão alto como eu sou. E por isto uma substância sensível, corpórea e imaginável como é a substância do homem não pode receber de mim grande glorificação sem mediação, e esta mediação é este Recém-nascido, Jesus Abençoado, Deus e Homem. E por isto os bem-aventurados verão na pátria a sua humanidade com visão física, e ouvirão as suas palavras profundíssimas e altíssimas, e por este caminho também sua alma alcançará a máxima e eterna glorificação.

Capítulo XXIV: Da Perfeição de Deus

Disse a divina Perfeição:

- Sou a Perfeição simples por mim, em mim e de mim; e isto, naturalmente; donde de segue que nada pode impedir o meu ser e o meu agir. E sou perfeita por mim mesma naturalmente, e não posso debilitar a perfeição, porque desde a eternidade recebi todo o meu ser. Quer dizer: não me estendo do imperfeito ao perfeito intrinsecamente, porém do perfeito posso produzir o perfeito e concluir o que de ambos procede; e isto de modo que naturalmente possa existir por intermédio do agir, assim como naturalmente existo pelo existir; isto é, não me compete mais existir por existir ou por ser realmente, que por agir, porque o meu agir é o meu existir e o meu produzir; e é em mim produzindo uma perfeição por si mesma, a qual permanece perfeita no seu próprio nome (isso é, distinto pela sua propriedade que o distingue); e ambos produzem uma perfeição, distinta numericamente e permanente (quer dizer, enquanto uma propriedade distinta, procedente de ambos, e permanente com o seu próprio nome, isto é, distinguida pela sua propriedade). Do que se segue uma necessária e natural relação de um com o outro por si mesmos, e por isto Eu sou, com toda eu mesma, naturalmente perfeita, existente em três; e de outro modo, sem as ditas pessoas mutuamente distintas, não posso perfeita e naturalmente existir e agir, haja vista que a minha perfeição há de ficar em três, que essencialmente são uma e só coisa, isto é, um Deus.

E ainda mais disse a Perfeição:

- Perfeita sou na máxima bondade, grandeza, eternidade, potestade, etc. E isto é assim por causa do meu perfeito e natural existir e agir, que são uma só coisa. E assim como eu sou em qualquer das outras dignidades por meu fazer natural, assim se encontra em mim qualquer delas por seu natural ser e agir, e, portanto, sou o infinito existir e agir, e toda a divina essência, naturalmente e simplesmente infinita.

E mais ainda disse a Perfeição:

- Como sou naturalmente perfeita no existir e no agir, quero que fora de mim haja um efeito perfeito, por Eu ser uma causa extrínseca perfeita: aquele efeito é o Filho da Virgem, Homem e Deus, Homem perfeito e Deus perfeito porque constitui-se de perfeita natureza divina e de perfeita natureza humana. Este Menino vem a ser como que o centro do universo, do qual distam todas as linhas, e todas nascem dele, de modo que o mundo seja perfeito e ordenado. Porém os homens maus e viciosos corrompem a perfeição do universo, enquanto desconhecem este Menino, o caluniam e blasfemam; e por isto eles mesmos também se destróem e se afastam de mim a uma distância infinita. Eu mesma dou cumprimento e perfeição às partes das quais o homem naturalmente se constitui, que são agora os primeiros componentes, as potências vegetativa, imaginativa, intelectiva ou raciocinativa, a fim de que qualquer homem seja uma perfeita individualidade na sua espécie. E a eles concedo um céu perfeito, a terra, e os animais e outros produtos da terra, de modo que perfeitamente me estimem, me entendam, e com estes mesmos dons meus me cubram. Porém estes perversos fazem-no ao contrário, de modo que alguns se voltam para os bens caducos e transitórios. Por outro lado, aperfeiçoo o intelecto do homem, para que perfeitamente me entenda, ainda que não me comprenda, pois não é capaz, sendo ele finito e Eu essência infinita e incompreensível. Porém eu o aperfeiçoo tanto quanto lhe basta e não é capaz, tanto quanto lhe corresponde e o merece; não obstante, não é aperfeiçoado infinitamente, antes em determinados sujeitos as paixões se encorajam e o entendimento perde força por culpa dos sentidos, pois, como os animais irracionais, se apegam a deleites e quimeras sensuais, e isto que Eu faço bom por natureza eles o tornam doentio; e, blasfemando, atribuem-me o que me repugna, e me negam o que me pertence. Por isto ficarão excluídos do conforto eterno e não serão aperfeiçoados em meu Filho, que foi entregue ao mundo para a sua máxima perfeição, antes serão condenados a um eterno suplício sem fim.

Capítulo XXV: Da Justiça Divina

Depois falou a divina Justiça:

- Eu sou a justiça, porque confiro igualdade entre todas as coisas; de onde a Justiça é chamada a que iguala o agente, o agível e a ação; e isto de modo excelente, isto é, entre o Pai e o Filho e o Espírito Santo. Também confiro igualdade, porque por mim todas as razões divinas no agir e no existir são consubstancialmente iguais, e a mesma essência divina está distante de toda desigualdade. Eu, a Justiça, também confiro igualdade porque afirmo que o poder divino tanto é infinito no que espeita ao seu poder de agir (isto é, à sua virtude ativa), quanto é infinito na sua duração; de outro modo Eu não seria Justiça igual e co-eqüitativa entre as razões divinas, porque mais atribuiria duração que virtude ativa, e o mesmo poder-se-ia dizer da bondade e das outras dignidades; porém isto é inconveniente e repugna a minha natureza; donde se segue que sou Justiça eqüitativa, e que o poder divino é tão absoluto em sua virtude ativa quanto em sua duração. Além disso, Eu assevero que os relativos iguais coexistem igualmente no entendimento divino e na divina vontade, assim como também na divina bondade e nas dignidades restantes; e isto tal como todas as razões divinas são por mim igualmente existentes, ativas e uma mesma essência. Todas são, por essência, idênticas. Por isto todos os relativos hão de se colocar igualmente em todos. Por outro lado, Eu sou eqüidade e justiça porque digo que todas as correlações são igualmente as três divinas pessoas (distintas somente e por igual em suas mútuas relações) e que todas ao mesmo tempo são igualmente a mesma essência, substância e natureza, um Deus singular e absoluto; por isso que aí não há mais perfeição em uma pessoa que na outra, nem essencialmente mais nas três que em uma só. E é coisa digna e justa que tal Deus, tão justo, tão poderoso e tão grande, seja conhecido e amado pelos anjos e pelo seu povo. É digno, de mais a mais, que assim como Deus é a causa primeira, ótima e máxima, também haja, fora d'Ele, um efeito ótimo e máximo: tal é este Menino, o qual, sendo verdadeiro Deus e Homem, nasceu da bem-aventurada Virgem Maria. Se um efeito melhor supõe uma causa melhor, e é tão melhor a causa quanto é melhor o efeito, não parece que máxima e propriamente se possa dizer ótima uma causa, senão quando tem um efeito ótimo, e mais ainda se o efeito fosse absolutamente o melhor possível. Contudo, o melhor e mais nobre efeito que pode haver é o recém-nascido Menino, o Cristo Nosso Senhor. Mais ainda, digo que é coisa boa e justa que eu castigue os maus retribuindo o mal com o mal, e recompensando os bons, dando a eles, pelo bem que fizerem, prêmio e bem-aventurança. E Eu não poderia fazer isto que é necessário se não houvesse, ao mesmo tempo, o paraíso e o inferno, já que não são suficientes os castigos e as recompensas nesta vida. Porque são muitos os que pecam todo o tempo de sua vida, e muitos os que por todo o tempo de sua vida fazem o bem: aqueles nenhum mal receberiam, e estes pouco bem, para não dizer nenhum. Seria então contra a minha justiça se a estes eu não concedesse algum bem, e semelhantemente algum mal aos outros. Isto não é possível. É necessário, então, admitir aqueles dois lugares, e que sejam sempiternos. Os que o contrário afirmam, permanecerão num lugar duríssimo. Vai contra a minha justiça que o intelecto de todos os homens seja o mesmo, de modo que, morto o homem, não permanecesse dele mais do que permanece de um cavalo, do boi ou do leão, e cessassem em absoluto todas as penas e todos os prêmios depois da morte. Contudo, o homem que venera e conhece Deus nesta terra está endereçado a uma finalidade mais alta; semelhante, na operação, aos anjos, faz-se partícipe de sua sorte: o homem bom, da dos anjos bons, e o homem mau, da dos anjos maus; assim, com os bons receberá prêmios ou com os maus experimentará suplícios sem fim. Eu sou Deus - disse a suprema Justiça. Estão errados aqueles que dizem que Deus não entende as coisas particulares, pois concede e retribui a cada um particularmente segundo as suas obras; e tudo o que se faz fora de mim é particular. Porventura Eu faço coisa que eu não entenda? Tudo o que faço, faço-o pelo intelecto; e porque sou a Justiça absoluta e tenho poder absoluto, sei e entendo todas as coisas em seu ser próprio.

E ainda disse mais a Justiça:

- Tudo o que há no mundo é meu na sua totalidade, pois que Eu e Deus somos o mesmo. E eis assim que o meu Filho unigênito, que é justíssimo recompensador dos bons e vingador dos maus, nasceu no mundo; todas as coisas d'Ele, minhas são, e as suas são minhas: d'Ele são o céu e a terra, e tudo o que contêm. Veio ao mundo para ensinar justiça e fazer justiça, de modo que o o mundo se convertesse a mim, que sou a sua mãe. E vede aqui que estou preparada para receber da mão do meu Filho caríssimo o mundo purificado e redimido por Ele, deposto todo aquele rigor que por culpa do pecado do primeiro homem até agora exerci com toda justiça. Eu tinha trancado as portas do céu; vede aqui que agora os franqueio ao meu Filho e a todos aqueles que são da sua parte. Eu tinha aberto os abismos; vede aqui que agora os fecho aos amigos de meu Filho, e aos inimigos de meu Filho a eles franqueio. Ele se fará príncipe sobre toda a terra (24) (vede no futuro os pontífices do meu Filho constituídos príncipes), de modo que não violem os santos direitos que a eles foram outorgados, pois Eu, a Justiça, sou a mãe d'Ele. Fazei justiça e evadi o eterno perigo das vossas almas.

Capítulo XXVI: Da Divina Misericórdia

A divina Misericórdia foi a última a falar, e disse assim:

- Sou a absoluta divina bondade, grandeza, eternidade, potestade, virtude, verdade. E por isto sou absoluta em conceder graças, e perdoar os pecadores, tal como sou gozo absoluto dos justos e dos pecadores, se pela sua malícia não se perdem; na qual se permanecem, não podem esperar gozo algum. De outro lado, entre Eu e os homens pecadores há virtudes intermediárias, que são as minhas servas, pelas quais os homens podem me merecer, adquirir e possuir com grande desfrute; porque se o pecador pratica contrição dos seus pecados, e deste modo pela contrição se justifica, Eu o justifico infundindo-lhe a graça; e se é prudente, fugindo do pecado e dos maus e escolhendo o bem, Eu o faço sensato por não querer os pecados e desejar as virtudes; e se é forte de coragem contra os vícios, Eu o faço mais, prometendo a ele os bens eternos; e se é predisposto à temperança, Eu lhe darei a justiça, que é minha irmã. E se assim o homem se habitua a estas virtudes, neste caso está bem disposto para receber de mim graciosamente os hábitos da fé, da caridade e da esperança, que para ele valerão o perdão dos pecados. Ao contrário, não tenho nada a ver com os pecadores, presas dos sete pecados mortais: avareza, gula, luxúria, soberba, preguiça, inveja, ira; nem podem ser estes vícios intermediários entre eu e os homens pecadores, antes aí entra a minha irmã (a saber, a Justiça), castigando-os e fazendo por mim ao mesmo tempo justiça e vingança. Os homens adormecidos nos pecados esperam ter-me no fim, e acreditam enviar-me uma esperança, que não me alcança, porque é disforme e indigna de aproximar-se de mim. Contudo, a esperança, informada pela caridade e educada pela contrição, merece aproximar-se de mim e impetrar perdão pelos pecadores, para que possam participar de mim, de modo que tal esperança é um núncio bom, verdadeiro e legítimo. Em troca, aquela outra esperança, senão que todas mais merece ser chamada presunção.

Disse mais ainda a Misericórdia:

- Quando o pecador contrito de coração me transmite a esperança de modo que lhe perdoe os pecados e lhe conceda parte de mim mesma, Eu sou a promotora inicial daquele primeiro anúncio: o pecador apenas se sente contrito e se prepara, sempre socorrido por meu auxílio, porém não pode ser mais extensivo; pois sendo Eu soberana e ele inferior, somente a Deus pertence perdoar os pecados e infundir a graça. Por esta razão, é coisa justa e digna, não podendo o pecador seguir mais adiante, que eu o determine e lhe perdoe os pecados. Porém, quando o pecador diz: "Quero estar em pecado, de modo que, estando em pecado, usufruo alguns deleites, esperando simplesmente da divina misericórdia que, no tempo futuro, há de me perdoar os pecados, quando eu lhe pedirei perdão com contrição, confissão e satisfação", grande é o engano deste pecador, imaginando participar de mim sem que Eu dele participe, mais ainda, estando longe de mim a uma infinita distância. E a razão é porque não me estima por mim mesma, senão por interesse próprio. Este amor não é inspirado pela caridade nem pela justiça, pois a caridade e a justiça mandam que os pecadores devem amar a Deus mais que a si próprios.

Mais disse ainda a Misericórdia:

- Em mim não há quantidade, pois sou infinita, e o meu agir não é finito. Por este motivo, ao perdoar os pecados ou infundir a graça, procedo absolutamente; em troca, o pecador, uma vez que é finito, age finitamente. Por isto os pecadores não hão de perder a esperança em mim, porque Eu sou capaz de perdoar, mais que os pecadores de pecar.

Finalmente, disse a Misericórdia:

- O menino que está no presépio é verdadeiro Deus e Homem. E Ele, enquanto Deus, é misericórdia; e, enquanto homem, suplica a mim, que sou Deus, que perdoe os pecados dos homens e lhes infunda a graça. A bem-aventurada Virgem Maria é Mãe do Menino, e é misericordiosa; agora ela me roga e continuamente me rogará que perdoe os pecadores, porque, por natureza, sou da sua linhagem, e da linhagem do meu Filho Jesus Cristo. Tampouco os anjos, os arcanjos e todos os santos cessarão de rogar, a seu tempo, misericordiosa e justamente, pelos pecadores, pois sabem que os deleites do céu não têm termo, e as angústias do inferno não têm fim, e eles amam os bons e odeiam os maus. Verdade é que eu, por suas orações, faço muitas graças, e farei ainda mais, e perdoarei muitos pecados. Direi ainda: mais quero infundir e outorgar muitas graças e perdoar muitos pecados do que ser rogada; de modo que as preces venham de baixo, e Eu esteja muito alta. Que devem eles fazer então? Preparem-se os pecadores a receber tal mercê mediante a contrição, a confissão, a satisfação e a caridade, louvando a mim e adorando o abençoado Menino, o meu Cristo, para que eu lhes perdõe os pecados, e ter-me-ão graciosa, abundante e para todos frutuosa. E se eles me rogam que Eu seja tal para eles, Eu quero também que eles sejam tal para mim, e que ouçam o meu Filho, que veio ao mundo humilde, pobre e misericordioso, e estende as suas misericórdias sobre todas as suas obras.

Assim falou a divina Misericórdia.

Capítulo XXVII: Preces das seis Damas

Depois de ouvirem tudo o que disseram as doze Rainhas ou Imperatrizes, a saber, as Razões Divinas, maravilhando-se com a profundidade, sublimidade, amenidade e beleza, as ditas seis Damas falaram entre elas dizendo:

- Se os pobres da terra ouvissem e entendessem tais palavras, elevadas e amenas, em todo o mundo não haveria senão um só povo cristão, assim chamado por razão do Cristo, nascido menino, verdadeiro Deus e Homem.

E então, suspirando e chorando com o grande júbilo, joelhos na terra e altas as mãos ao céu, cada uma delas ao seu modo, cantou um cântico. (25)

A primeira cantou esta cantilena:

- Ave, alvorada, que agora te ergas, trazendo ao mundo o seu dom, a desejada alegria.

A segunda cantou:

- Deus vos salve, Madre pia, doce vida, júbilo e caminho, trazei-nos o Filho de Deus.

A terceira entoou isto:

- Salve, Rainha dos Céus, Mãe do Rei da glória, triclínio de toda honra.

A quarta Dama disse:

- Ave, Rainha gloriosa, honra de todas as virgens do céu, da terra e do mar.

A quinta dama cantou isto:

- Eu vos saúdo, do mar estrela, Mãe e ama de leite de Deus, portal do alto paraíso.

A sexta se expressou assim:

- Ave, oh Virgem Maria, nave de toda a graça, arca do Espírito Santo.

Findas estas cantorias, rogaram à sacratíssima Mãe e virgem que intercedesse diante de seu Filho abençoado, de modo que elas fossem excitadas nos corações dos homens, a fim de que sempre a pudessem servir como servas fidelíssimas. Atendeu a muito benigna rainha, Mãe de Deus e da misericórdia, às preces das seis Damas, as quais, depois de terem humildemente beijado o pé do Menino Jesus, partiram muito consoladas.

Capítulo XXVIII: Dedicatória e preces ao Rei Felipe de França

Esta visão teve Raimundo em Paris; a qual não muito depois, em benefício do povo cristão e maior honra do Menino Jesus, quis deixar por escrito, e acabou de redigi-la em Paris mesmo, na noite de Natal do ano da encarnação de mil trezentos e dez. (26) E, concluída, a ofereceu ao magnífico e glorioso Felipe, rei da França, ao qual elevou alguns muito humildes pedidos.

O primeiro, que para maior honra do Menino santíssimo haja vista que ao mesmo rei, sobre todos os outros monarcas da terra, têm poder singular a justiça, a verdade, a fé, a caridade, a esperança na bem-aventurança, a dignidade do reino com a fortaleza, a magnanimidade com a temperança, a largueza com a prudência, a vontade de bem agir com a potência, a humildade, a devoção e a religião cristã, a piedade, a benignidade, a sabedoria, a castidade e, em resumo, muitíssimos dons naturais, gratuitos e infundidos) seja de seu agrado ser defensor da fé cristã assim como protetor da Igreja, vigiar os seus nobres e os prelados eclesiásticos, de modo que todas as coisas se façam com boa ordem, sem confusão, extirpando do seu reino todos os vícios e nele plantando todas as virtudes em todo grau de perfeição; de modo que o seu reino não somente se diga, senão que em realidade seja, cristianíssimo; e o seu reino seja espelho e exemplo para todos os reis cristãos em todas as virtudes próprias do ofício real.

A segundo pedido foi que seja do agrado de sua majestade cristianíssima banir os ditos e os livros de Averrois e desterrá-los e extirpá-los do Estudo de Paris, de forma que daqui em diante ninguém se atrevesse a citá-los, lê-los ou ouvi-los comentar, haja vista que são uma podridão de erros asquerosíssimos contra a nossa muito santa Fé, e que (o que é ainda mais perigoso) naqueles que os transmitem engendram, cada dia mais, muitos e graves erros novos. Porque é coisa torpe na boca de cristãos que a nossa santa fé seja mais improvável que provável, e outros inumeráveis absurdos, que com insolência propalam aqueles que professam a herética doutrina de Averrois.

O terceiro pedido foi que seja do agrado do magnífico rei cristianíssimo criar no seu Estudo de Paris algumas cátedras nas quais fossem ensinados diversos idiomas dos infiéis, de modo que pessoas devotas, sábias e letradas, adestradas em diferentes línguas, deste reino cristianíssimo (com plena autoridade e amplas bençãos do santo pai) fossem enviadas para todo o mundo universo a pregar o evangelho. Se neste reino fosse ditada uma ordem semelhante, logo seria adotada em outros reinos e terras, e com a graça de Deus, que nunca falha para com os bem dispostos, seriam muitíssimos os que pelo amor de Cristo desejariam ser martirizados, como os apóstolos e seus discípulos. Seria bom que esta ordem fosse observada e durasse muito tempo, para que se fizesse um só rebanho e um só pastor, conforme está profetizado (27), de modo que toda a linhagem louvasse e, conhecendo-o, estimasse Jesus Cristo, Filho de Deus, que agora é vituperado, negligenciado, ignorado.

- O quarto pedido foi que o rei sereníssimo tivesse a benignidade de rogar e exortar o pai santo e os conselheiros da santa sé, que de todas as ordens militares fosse feita uma só ordem, que, lutando contra o povo infiel, recuperasse a Terra Santa, e que ele rogasse também a contribuição de dízimos e outras generosas ajudas para a defesa e o aumento da nossa santa fé e para a conquista dos que estão fora dela. É coisa bem justa que um rei tão piedoso erga tal pedido, como defensor que é da fé, para a maior honra do Menino santíssimo, e que procure com o zelo mais atento este negócio, ao qual o senhor papa e os seus mais próximos conselheiros estão obrigados mais especialmente, enquanto súditos mais especiais do Santo Menino sobre o qual a Santa Igreja está fundada, de modo que por todo o universo o Menino Jesus seja adorado, para que seja fechado o caminho que desce para o inferno, aberta a porta do paraíso, e todas as milícias celestiais regozijem-se em plenitude. E se isto for intentado, não se poderá desconfiar do auxílio de Deus e do Cristo salvador e da sua Mãe a Virgem Santíssima, a qual, com toda a multidão dos bem-aventurados, não cessará de rogar a seu Filho glorioso que neste assunto ajude os seus servos, os guarde e defenda.

Depois que Raimundo elevou ao rei estas súplicas, retirou-se da sua presença tendo posto o livro nas suas mãos; e o confiou a Jesus Cristo, pela glória do qual o compilou, a fim de que quisessem prosperar aqueles pedidos e comover o coração do rei e de todos os príncipes das terras de cristãos para que os levassem a efeito, de modo que, por toda parte, fosse conhecido, honrado e amado, e que, assim como é digno, o reino e o império sempiterno fossem tributados à Virgem Gloriosa e ao seu Filho abençoado, Deus encarnado e dela nascido no mundo, o qual, com o Pai e o Espírito Santo, teve igual honra e glória por séculos e séculos.

Assim acaba o pequeno livro do piedoso eremita Raimundo, Do nascimento do Menino Jesus.

 
 
 

(1) Felipe IV, o Belo, como se disse na Introdução. Voltar.

(2) Todo o livro é repleto de alusões bíblicas. Só vêm especificadas as que são literais ou quase. Aqui cf. Is, 9, 6. *. N. dos T.: no original lê-se Minyó (rapaz). Voltar.

(3) Cf. Jo. 1, 14. Voltar.

(4) Cf. Is. 9, 6. Voltar.

(5) Is. 9, 6. Voltar.

(6) Fil. 4, 7. Voltar.

(7) Sl. 2, 10. Voltar.

(8) Lc. 2, 14. Voltar.

(9) Cf. Mt. 21, 15. Voltar.

(10) Cf. Ct. 5, 6; 3, 4; 2, 5.Voltar.

(11)Cf. Mt. 21, 9. Voltar.

(12) Sl. 50, 3. Voltar.

(13) Is. 9, 6; Mt, 11, 25; 16, 15; Jo. 6, 69. Voltar.

(14) Lc. 23, 46. Voltar.

(15) Lc, 23, 46; Mt. 26, 39.42. Voltar.

(16) Sl. 84, 11. Voltar.

(17) Cf. Tit. 3, 4. Voltar.

(18) Aqui e em muitos outros pontos do presente tratado, R. Llull ataca diretamente as doutrinas averroístas. Não será necessário assinalar todos eles. Voltar.

(19) Neste último parágrafo, impensadamente, a divina Bondade deixa a palavra e a toma Jesus Menino. Voltar .

(20) Nova ferroada nos averroístas. Voltar.

(21) A edição de 1499 diz, por erro, "amantem". Voltar.

(22) Cf. Is. 52, 6; 58, 9. Voltar.

(23) Cf. Fl. 2, 10. Voltar.

(24) Cf. Sl. 44, 17. Voltar.

(25) Todos aqueles cânticos estão inspirados na sagrada escritura e na liturgia do natal. Voltar.

(26) Que coincide também com o ano do nascimento de 1310. Voltar.

(27) Jo. 10, 16. Voltar.

     
   
0. Proêmio
I. Primeira Dama
II. Segunda Dama
III. Terceira Dama
IV. Quarta Dama
V. Quinta Dama
VI. Sexta Dama
VII. Como encontraram o menino
VIII. De Louvor
IX. Da Oração
X. Da Caridade
XI. Da Contrição
XII. Da Confissão
XIII. Da Satisfação
XIV. As Damas louvam Menino Jesus
XV. Da Divina Bondade
XVI. Da Grandeza de Deus
XVII. Da Eternidade divina
XVIII. Da Divina Potestade
XIX. Da Sabedoria ou Entendimento Divino
XX. Da Divina Vontade
XXI. Da Virtude Divina
XXII. Da Divina Verdade
XXIII. Da Glória de Deus
XXIV. Da Perfeição de Deus
XXV. Da Justiça Divina
XXVI. Da Divina Misericórdia
XXVII. Preces das seis Damas
XXVIII. Dedicatória e preces ao Rei Felipe de França
Breviculum, miniatura 11:
Ramon Lull i Thomas Le Myésier
 
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